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Como a falta de dados sobre mobilidade reforça o racismo estrutural

Informações limitadas sobre raça na área de mobilidade geram políticas públicas desconectadas da questão racial e que reforçam desigualdade entre negros e brancos

Mais de 80% das vítimas de atropelamento ferroviários na região metropolitana do Rio em 2018 eram negras. O dado consta na última edição do Mapa da Desigualdade, lançado em 2020 pela Casa Fluminense. 

O número veio à tona graças a um levantamento iniciado em 2017, por conta da morte de Joana Bonifácio. A jovem negra de 22 anos embarcava em uma composição na estação de Coelho da Rocha quando o veículo partiu e a atingiu. Joana morreu na hora, mas a concessionária Supervia demorou 8h para informar a família sobre o óbito. O caso revela as limitações na produção de estatísticas ligadas à raça na discussão sobre mobilidade no Brasil.

Na opinião de especialistas, a falta de informações sobre o tema gera políticas públicas que não combatem o racismo e reforçam a desigualdade entre negros e brancos no país.

Sem dados

Multidão aguarda trem na estação Sé do metrô, em São Paulo | Foto: Lena Diaz/ Fotos Públicas

As pesquisas origem-destino são uma das principais ferramentas para entender o sistema de transportes de uma cidade. Apesar de serem realizados no Brasil desde a década de 1960, estes levantamentos não coletam dados relacionados à raça no país. 

Fundadora da empresa Multiplicidade Mobilidade Urbana, Glaucia Pereira acredita que a falta de informações do tipo nestes estudos é um dos fatores responsáveis pela falsa impressão de igualdade que existe entre os territórios de nossas metrópoles. “O racismo está naquilo que a cidade escolhe enxergar”, comenta ela.

Para a professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás Anna Benites, a não-produção de informações sobre pretos e pardos na área de transportes reproduz a forma como a sociedade brasileira enxerga estes segmentos. “Não falar de algo é dizer que aquilo não é importante ou não existiu”, diz ela. “A ausência destes dados raciais de mobilidade reflete metrópoles que não são para todos”, afirma.

A dificuldade que prefeituras têm para realizar pesquisas que levantem e organizem dados é outro aspecto apontado como justificativa para escassez de informações sobre mobilidade e raça. De acordo com o coordenador da Casa Fluminense Henrique Silveira, ela é agravada pela cultura de sigilo que ainda predomina nos órgãos. Em muitos casos, as secretarias dificultam ao máximo o acesso a dados e documentos.

Diante deste cenário, quem estuda o impacto das relações raciais no sistema de mobilidade do país é forçado a trabalhar apenas com os dados disponibilizados pelo Censo. Inicialmente marcada para acontecer neste ano, a próxima edição do levantamento foi transferida para 2021 por conta da pandemia e ainda não está totalmente confirmada. A situação preocupa especialistas. “Tem que ter censo em 2021. Não pode ser adiado”, diz Silveira. “Num cenário em que sua realização esteja garantida, temos que exigir que componentes de raça sejam investigados”, acrescenta.

Sem políticas públicas

Passageiros no hall da Central do Brasil, no Rio | Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

A falta de dados sobre como negros utilizam o sistema de transportes cria políticas públicas que não consideram a questão racial. 

Uma consulta aos planos diretores das capitais da Região Sul mostra a gravidade do quadro. Enquanto os termos “mobilidade” e “transportes” são citados algumas dezenas de vezes nos documentos elaborados para Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, as palavras “negro”, “raça” e “racismo” sequer aparecem em suas páginas.

Realizado pela arquiteta e urbanista Kelly Fernandes, outro levantamento indicou que a questão racial não é um fator levado em conta em nenhum dos editais de licitação das 12 cidades brasileiras com maior população. “Isso gera sistemas baseados no preço da passagem e que têm um impacto maior sobre a população mais empobrecida, que é majoritariamente negra e periférica”, explica ela, que é analista do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Kelly lembra ainda que a Política Nacional de Mobilidade em vigor desde 2012 prevê a igualdade como um dos princípios a serem seguidos pelo setor. Porém, situações como as descritas vão na direção oposta a isso. “Como não temos os dados exatos, não sabemos quais grupos são prioritários para reduzir as desigualdades em mobilidade”, resume.

Soluções

Estação de metrô da Lapa, em Salvador (BA) | Foto: Pedro Moraes/GOVBA

A saída encontrada pela população negra para viver em cidades que não foram pensadas para atender suas demandas foi desenvolver suas próprias soluções de mobilidade. Um exemplo é o Ulbra, app de carona criado por moradores da Brasilândia, bairro paulistano em que pretos e pardos são metade da população e classificado como área perigosa por aplicativos como o Uber.

Em outra frente, instituições independentes têm realizado estudos por conta própria para tentar compreender a presença de negros no sistema de transportes brasileiro. Realizada pela ONG Transporte Ativo, a última pesquisa Perfil do Ciclista mostrou que homens pretos e pardos de periferia representam 44% dos usuários de bicicleta do país.

Doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, Daniel Caribé defende a criação de uma teoria urbana que leve em conta a segregação socioespacial que atinge a população negra em nossas cidades.  

“Hoje, o Censo nos diz onde estão os negros, a renda deste segmento e outras informações”, afirma ele. “Mas não sabemos qual é a qualidade do transporte público que usamos, a frequência com que o serviço é oferecido, ou mesmo os nossos deslocamentos mais comuns”, explica.  “Isso é importante até para que a gente possa definir que tipos de dados precisamos buscar”, resume.

Por Saulo Pereira Guimarães

Confira as entrevistas completas da reportagem:

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