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“Faltam dados sobre os negros no Brasil”, afirma Glaucia Pereira, fundadora da Multiplicidade Mobilidade Urbana

A ausência de dados sobre a população negra é uma das facetas do racismo estrutural. A afirmação é de Glaucia Pereira, fundadora da empresa Multiplicidade Mobilidade Urbana e mestre em administração pela USP.

Na entrevista para a série A Cor da Mobilidade, a pesquisadora revela como o preconceito se reflete de diferentes maneiras no setor de transportes, que incluem da predominância de pretos e pardos nos postos de trabalho com menor remuneração à oferta de ônibus pensada de acordo com as necessidades das áreas mais nobres da cidade em metrópoles como São Paulo. Glaucia mostra que até aspectos como o horário de trabalho das faxineiras ganham outro significado quando cruzados com a questão racial. Para ela, a admissão do problema e o aumento dos esforços para identificá-lo e dirimi-lo são a melhor caminho para reduzir as desigualdades que o preconceito cria.

Há quanto tempo você trabalha com mobilidade?

Trabalho com mobilidade urbana há 13 anos, sempre na parte de pesquisas e dados. Sou formada em física pela USP e tenho mestrado em administração, na área de dados aplicados. Após uma passagem pelo mercado, atuei por 10 anos no setor de pesquisa da CET-SP. Em 2017, pedi demissão e fundei a empresa Multiplicidade Mobilidade Urbana. Nossos principais clientes são ONGs, para as quais fornecemos arcabouço metodológico para diferentes pesquisas.

Como você foi da física para área de mobilidade?

Não existia até pouco tempo atrás cursos de graduação específicos sobre mobilidade urbana. Historicamente, este é um assunto discutido por pessoas com diferentes formações: jornalistas, engenheiros, geógrafos, arquitetos. Mobilidade é um tema transversal, já que, sem ela, não há acesso à saúde, cultura e outros direitos. O meu trabalho sempre foi tentar medir o que era possível, sem a interferência de nenhum viés. 

E como você enxerga a relação entre racismo e mobilidade no Brasil?

Entendo que há racismo na forma como os dados não são coletados. Temos, por exemplo, as pesquisas Origem e Destino que, desde a década de 1960, são feitas para entender os deslocamentos em regiões metropolitanas. Várias cidades do país fazem levantamentos do tipo, mas nenhuma delas coleta dados relativos à raça. Isso gera uma falsa impressão de igualdade entre os territórios, que tem impactos na mobilidade. É um expediente que tem por objetivo mais invisibilizar do que tornar qualquer análise sobre o tema factível.

É possível perceber o racismo estrutural no mercado de trabalho de mobilidade?

Sim. Quando você considera as linhas de ônibus paulistanas, por exemplo, há mais motoristas brancos e mais cobradores negros. Como os cobradores ganham menos, este fenômeno pode ser lido como um exemplo de racismo estrutural. Outro exemplo: a grade de horários dos ônibus é pensada para atender as regiões ricas, que têm população predominantemente branca. Há uma concentração de linhas entre 7h e 9h e pouca oferta entre 5h e 6h, horário em que a necessidade do serviço é maior na periferia, onde grande parte da população é negra. O racismo está naquilo que a cidade escolhe enxergar. Fiz uma playlist colaborativa no Spotify com músicas que abordam a questão da mobilidade urbana e reuni 60 canções. A maioria delas trata sobre a exclusão por meio do acesso negado a um bom serviço de transportes. Mas é difícil discutir isso porque faltam dados e olhares. 

Você lembra de outros exemplos nesse sentido?

Há uma tese apresentada em 2009 pelo Ricardo Barbosa da Silva na USP sobre motoboys na década de 1990 que mostra que, como eles eram identificados como negros, tinham suas mortes em acidentes de trânsito naturalizadas pela sociedade. Levantamentos recentes mostram que 71% dos entregadores de aplicativo que usam bicicleta em São Paulo são negros, contra 37% de população negra na cidade, de acordo com o Censo 2010. Em muitos escritórios, motoboys e entregadores só podem ocupar locais específicos, o que também caracteriza um tipo de segregação do espaço nestes ambientes.

O racismo estrutural afeta a mobilidade das pessoas na cidade?

Sim. Podemos pegar como exemplo a pesquisa do perfil do ciclista. O número de pretos e pardos que pedalam corresponde aos percentuais destes segmentos na população do país. Porém, quando você separa por gênero, vê que a quantidade de mulheres negras ciclistas é muito pequena quando comparada à fatia delas na nossa população. Homens negros representam 27% dos brasileiros. Mulheres negras, 28%. Mas há 13% de ciclistas negras e 44% de ciclistas negros. Na prática, os homens negros pedalam porque não têm dinheiro para passagem e muitas mulheres negras sequer aprendem a andar de bicicleta. Muitas têm uma jornada de trabalho incompatível com o uso de bikes. Ainda assim, a imagem estabelecida do ciclista é a de um homem branco de área nobre, o que não corresponde exatamente à realidade. O mais comum no Brasil é que o ciclista seja um homem negro de periferia.

O impacto do racismo na mobilidade tem que efeitos colaterais?

A naturalização da morte de pessoas negras no trânsito, na figura dos motoboys e dos tar desempenhando outras atividades no período gasto com as viagens. Embora haja poucas pessoas negras trabalhando este tema da mobilidade, o antirracismo deveria ser uma bandeira de todos. Vamos demorar a entender todas as consequências do preconceito. Em São Paulo, por exemplo, o turno das faxineiras em várias empresas vai de 6h às 15h.  Isso faz com que muitas mulheres negras saiam do trabalho no momento do dia com menor oferta de ônibus. Até 2015, São Paulo não tinha ônibus nas ruas depois de meia-noite. A ausência desta alternativa impedia a população negra da periferia de ir ao teatro ou ao cinema e voltar para casa de transporte público. O próprio vale-transporte com uso exclusivo para deslocamento de trabalho impede que aquela pessoa visite um parente no fim do semana ou algo do tipo. É uma mobilidade totalmente limitada. Ainda há muita pesquisa para ser feita.

E há soluções interessantes desenvolvidas pela população para estes problemas?

Sim. Um exemplo interessante é o aplicativo Ulbra, criado por moradores da Brasilândia. Ele substitui naquela área o Uber, que não funciona ali por classificar a região como “perigosa” – o que é preconceituoso. As pessoas dali dependiam deste tipo de transporte em função do número reduzido de linhas de ônibus e o app terminou resolvendo isso. Mais do que iniciativas da população, sou a favor de que haja diretrizes baseadas em raça para rever nossos padrões de mobilidade. É um fator que devia ser levado em conta nas licitações de serviços, no horário de funcionamento deles e outros aspectos. Só assim o racismo estrutural será enfrentado de frente neste setor.

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