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“O racismo adoece e mata”, diz Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade

O racismo adoece e mata. O alerta é de Jô Pereira, artista cênica e diretora geral da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade).

Na entrevista para série A Cor da Mobilidade, a ativista mostra como as consequências do racismo estrutural – como a hiperssexualização do corpo negro e a configuração excludente das grandes cidades brasileiras – se traduzem para pretos e pardos no Brasil em situações cotidianas de assédio e menor poder de decisão em relação ao planejamento do transporte público, entre diversos outros problemas. Jô acredita que essas construções sociais estão a serviço da manutenção do preconceito, aponta os caminhos para superação deste problema e fala dos desafios que se apresentam a quem se dispõe a mudar este cenário.

Há quanto tempo você atua na área de mobilidade?

Trabalho com projetos relacionados à mobilidade já há alguns anos. Sou artista cênica, formada em educação física e tenho pós-graduação em arte integrativa, área que atua na saúde, educação e na Arte. Foi essa formação que me levou a desenvolver projetos como o Mapa Afetivo da Mobilidade, que relaciona a Mobilidade Ativa – caraterizada pelo andar a pé, de bike, skate, patins ou patinete – e os afetos que ela pode proporcionar na relação com o bairro e a cidade nos lugares de passagem. Atuo também como diretora fundadora do Pedal na Quebrada, iniciativa que ensina crianças, jovens e mulheres negras e não-negras de periferia a pedalar e ocupar o espaço público, além de transmitir noções básicas da mecânica das bicicletas. A ideia é por, meio disso, permitir discussões sobre o direito à cidade, violência doméstica, mercado de trabalho e outros temas que surgem nas oficinas. No fim, o projeto se torna uma ferramenta para discutirmos cidadania a partir do uso da bicicleta. Além disso, entrei no Ciclocidade como voluntária em 2017 e atuei como diretora geral da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) no último biênio e fui reeleito para exercer o cargo até 2022. Neste período, fizemos um trabalho de incidência política em relação à infraestrutura de mobilidade paulistana e muita pesquisa sobre esta área na cidade também. A Auditoria Cidadã foi um projeto desenvolvido com 50 ciclistas das 5 regiões da São Paulo, que mapearam toda infraestrutura cicloviária da cidade. Essas informações respaldaram as audiências públicas para construção do Plano Cicloviário.

E como a questão do racismo está presente no seu trabalho hoje?

Minha militância sempre foi forte no feminismo negro e, naturalmente, levei este assunto para minha atuação no cicloativismo. Território, gênero e etnia são temas que eu sempre levo para essas discussões. Existe um discurso estabelecido que gera a exclusão da maioria e se traduz na configuração dos territórios, na forma de áreas pobres afastadas dos centros e zonas de exclusão dos direitos humanos em partes centrais das cidades. Mas, como afirma a arquiteta e urbanista Tainá de Paula, as periferias são a centralidade, não o Centro Expandido. Enquanto a gente não repensar a mobilidade para atender as maiorias, ela ainda será um privilégio. Mobilidade ainda é um setor pensado por homens brancos, que não andam de transporte público no dia a dia. Nós, negros, precisamos influenciar nessas áreas em que fomos tolhidos de estar. A importância de ocuparmos estes espaços de decisão é defendida não só por mim, mas também por pensadoras como Angela Davis. E isso se aplica não só na mobilidade urbana, mas nas zonas rurais perto das cidades, onde também falta bons serviços, vias e calçadas adequadas e outros direitos.

Você tem um trabalho especificamente voltado para ensinar mulheres negras de periferia a andar de bicicleta. Por que tantas delas não sabem pedalar?

No livro “Meninos e Meninas aprendendo sobre masculinidades”, a autora Carrie Paechter divide os brinquedos em duas categorias. Os dinâmicos, destinados em geral aos meninos, e os estáticos, reservados às meninas. Socialmente, as mulheres são orientadas desde pequenas a ficar em espaços seguros, com proteção. As meninas são incentivadas a cuidar da vida doméstica. Sendo assim, a bicicleta não é vista como brincadeira de menina, por ser algo perigoso. Na população mais pobre, a menina é quem cuida da casa quando os pais saem para trabalhar e sua brincadeira fica restrita ao cuidado. Elas assumem responsabilidades muito cedo. Na adolescência, muitas mulheres negras periféricas engravidam. No fim, a criança cresce e não aprende a pedalar, a ponto de achar que aquilo “nem faz falta” em sua vida. Além disso, o percentual de negros na base da pirâmide social é muito grande e, para muitos, ter uma bicicleta é algo oneroso. Então, é uma série de fatores que leva a essa situação. Na nossa sociedade, a mulher negra é vista como a outra do outro, como diz a Grada Kilomba. Além do racismo, o sexismo também limita seu acesso a todos os seus direitos.

Como se dá a aproximação delas nas oficinas do projeto?

Eu sempre começo perguntando se elas gostariam de aprender a pedalar. A maioria responde que sim e apresenta todas essas razões que citei para não ter aprendido ainda. Logo, quando há oportunidade, há interesse. Infelizmente, o segmento negro e feminino da população ainda é aquele que mais sofre violências sociais, emocionais, físicas e de outros tipos. Quando comecei a desenvolver o projeto, minha intenção era ocupar um espaço que sempre foi negado pela sociedade. Mostrar que estas mulheres são pessoas com direitos e desejos. É um movimento que dialoga muito com a ideia da Djamila Ribeiro de lugar de fala em construção.

Em que outras frentes da mobilidade você enxerga os efeitos do racismo?

Dei aula em uma universidade durante 8 anos. Na primeira semana, era sempre vetada na entrada de professores pelo mesmo segurança. Ele nunca me perguntava se eu era professora. Até que, num determinado momento, ele, que era negro, foi extremamente grosseiro comigo. Quando soube do engano, disse que eu não havia informado que era professora. Eu respondi que ele nunca havia me perguntado. Somos sempre julgados e subestimados, mesmo com a melhor roupa. O racismo estrutural faz com que sejamos vistos como menores, no entendimento das outras pessoas. Acho interessante nessa situação como o discurso branco força o cumprimento de regras racistas por parte de uma pessoa negra. No caso em questão, o segurança que me barrou. É um preconceito que pode mexer com nossos alicerces se não temos firmezas de quem somos. Não é à toa que as certos problemas psicológicos são mais frequentes entre negros. O racismo adoece e mata. Tenho 2 irmãos. Um tem traços mais finos, parece um indiano. O outro, tem feições mais negróides e, desde os 11 anos, é parado pela polícia e tratado como moleque. No caso das mulheres, isso se materializa na forma da agressão ao nosso corpo, com gente que passa a mão, diz palavras inapropriadas. Na mobilidade, isso se traduz no medo de andar sozinha à noite na periferia. Pego ônibus desde os 11 anos e já passei por várias situações de assédio sem saber por causa disso. O corpo do homem e da mulher negra são hiper sexualizados pela sociedade e isso tem consequências. Para mim, essas construções sociais são estratégicas e foram criadas para que o negro tivesse medo de quem tem poder. Enfim, o racismo é algo muito pernicioso, arraigado e dolorosamente presente.

Você já enfrentou problemas deste tipo na sua atuação como ativista de mobilidade?

No ano passado, fui chamada para participar de um evento da Yellow em maio. As violências aconteceram desde o convite, já que eles informaram que não poderiam pagar pela apresentação. A partir daí, uma pessoa da comunicação da empresa pediu por 3 vezes, antes do evento, que eu apresentasse o conteúdo que eu iria levar. Com todos os outros participantes, apenas uma reunião ou telefonema haviam sido suficientes. Por fim, uma representante da companhia pediu que eu fosse à casa dela. Minha apresentação usava Carolina Maria de Jesus e outras figuras negras para abordar o tema de mobilidade, que foram cortadas por ela. Em um determinada momento, ela me perguntou como meu cabelo estaria no dia da apresentação e recomendou que eu fosse de turbante. Tenho o cabelo crespo, grande, gosto de usá-lo solto e disse a ela que iria como bem entendesse. Depois, me levantei para ir embora. Quando estava na porta, ela me perguntou “mas e o dress code”? Saí violentada. Fui permissiva por não acreditar no que acontecia. No dia do evento, fiz minha apresentação conforme o combinado, mas citei todos os aspectos que ela havia cortado. Além da apresentação, estava prevista minha participação em uma mesa redonda com o CEO da Yellow e outros dois representantes da periferia para uma plateia de 500 pessoas. Quando percebi que os 3 se articulavam na conversa para me encurralar, expus meu desconforto com a postura racista e colonizadora de uma empresa com presença mas sem nenhum relacionamento com os nossos territórios. A experiência toda foi muito dolorida, mas rendeu um grande aprendizado. Depois dela, minhas ações de combate ao racismo ganharam ainda mais força.

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