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“A população negra seria a maior beneficiada pelo barateamento ou fim da tarifa de transporte público” afirma Daniel Caribé, doutor pela Universidade Federal da Bahia

A população negra seria a maior beneficiada pelo barateamento ou fim da tarifa de transporte público. A opinião é Daniel Caribé, doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal da Bahia. 

Em entrevista para a série A Cor da Mobilidade, o pesquisador apresenta sua leitura da teoria dos espaços divididos, do geógrafo Milton Santos, que se dá sob a ótica da questão racial. O semi-apartheid de Rio, Salvador e outras cidades brasileiras e suas consequências são analisados por Caribé. Segundo ele, antes da pandemia, 30% dos moradores da capital baiana não tinham dinheiro para acessar o sistema de mobilidade da cidade.

Caribé também falou sobre a importância dos instrumentos para reduzir a desigualdade racial na área de transportes, como a coleta e a análise de dados para elaboração de políticas públicas e a criação de teleféricos e outros projetos de mobilidade mais adequados à cidade de Salvador.

Qual é sua formação e como ela se relaciona com a questão da mobilidade?

Sou mestre em administração pública e doutor em arquitetura e urbanismo pela UFBA, onde também atuo como servidor. Durante meu doutorado, pesquisei gestão e financiamento dos sistemas de transporte coletivo em diversas metrópoles. Analisei a tarifa zero em cidades que a implementaram no Brasil e na França (para onde fui com o financiamento de uma bolsa sanduíche), observando questões como discurso, forma de financiamento e impacto na produção de espaço. Como a UFBA é uma universidade multicampi, essa questão da mobilidade é algo muito presente e trabalho justamente com os contratos de transporte da instituição. Além disso, participei do Movimento Passe Livre em Salvador entre 2013 e 2015 e nunca deixei de estudar questões como planejamento urbano e participação popular na elaboração de planos. É no grupo de pesquisa Lugar Comum, da Faculdade de Arquitetura da UFBA, onde sou pesquisador, que dou continuidade a esses estudos. Com a emergência das discussões sobre racismo, tenho analisado a produção de espaço pela mobilidade urbana.

De que forma o racismo aparece na pesquisa que você desenvolve?

Milton Santos criou uma teoria sobre os espaços divididos. Este conceito não trata da questão racial de forma explícita, mas eu o atualizo nos meus estudos recentes. Para ele, as cidades do então terceiro mundo têm 2 circuitos econômicos distintos. Um é o superior, que é planejado, abriga as elites e é produzido por intervenções estatais. Este espaço recebe serviços de qualidade e tem um tráfego racional. Já o circuito inferior é autoproduzido, tem uma interferência mínima do Estado e, no Brasil, abriga a maior parte dos pretos e pardos. Como um circuito usa mão de obra de outro, há um sistema mínimo e com tarifas caras para que estas trocas aconteçam. Isso é muito claro em cidades como Rio e Salvador, que têm favelas perto de bairros de classe alta e periferias afastadas, que impactam na demanda de mobilidade. Assim, temos um sistema de transportes pensado apenas para levar e trazer trabalhadores do circuito inferior para o superior. Ele não é projetado para atender demandas como o lazer ou mesmo pensado como um direito. É um sistema de transportes que legitima a segregação ao não tentar superá-la. Ele só garante circulação e impede que as classes populares se apropriem do circuito superior. 

Como essa dinâmica se manifesta na cidade de Salvador hoje?

Salvador é um caso atípico, por conta da evidência da questão racial aqui. Mas toda a formação da classe trabalhadora brasileira é atravessada pelo racismo. Trata-se de uma mão de obra inicialmente importada pela escravidão para desempenhar as tarefas mais extenuantes. Após abolição, seus descendentes seguiram com os trabalhos mais pesados, de menor prestígio social e menor porte tecnológico, mais cansativos. Enquanto isso, outros trabalhadores importados – desta vez, de forma mais ou menos voluntária – da Europa assumiram as funções menos extenuantes e de maior intensidade tecnológica. Em Salvador, este semi-apartheid é algo muito evidente. A lei não determina que os negros vivam nos bairros com piores serviços e infraestrutura. Mas, na prática, é isso que acontece. A maior parte dos negros vive nas periferias espaciais e outras áreas que compõem o que Milton Santos descreveu como circuito inferior. Já os brancos ocupam prioritariamente os lugares de centralidade, o circuito superior. Isso se reflete na forma como o sistema de transportes é visto dentro da cidade. Na Europa, a mobilidade é vista como um direito e, por isso, há esforços para reduzir a tarifa paga pelo usuário. Em alguns casos, empresas que geram demanda pelo serviço até financiam parte do preço da passagem. Esta visão do transporte como responsabilidade da sociedade não existe no Brasil. O máximo que temos são recursos como o vale-transporte, criado na década de 1980 e que só atende quem está no mercado formal. Um instrumento como esse legitima a exclusão social, se você considerar que quem financia o sistema são os trabalhadores informais – que, em diversas metrópoles brasileiras, formam uma maioria negra. Isso só gera empobrecimento e imobilidade urbana.

Quais são as outras consequências desta visão?

Uma pesquisa do IBGE mostrou que os gastos com mobilidade são a 2ª maior despesa das famílias brasileiras. Só perdem para os custos de moradia. Como consequência, as famílias estão se endividando para participar das cidades. É o dinheiro gasto na compra e manutenção do carro, na passagem de ônibus ou mesmo nas corridas de aplicativo. No fim, a pobreza é agravada pela falta de um transporte público de qualidade. Lá atrás, tínhamos práticas como a carona – em que um carro era usado por várias pessoas –, mas até isso foi capturado pelo mercado na forma do Uber e outros serviços. No caso específico de Salvador, o que vimos de 2012 para cá foi um aumento no número de pobres, uma redução da oferta de linhas de ônibus e reajustes da tarifa acima da inflação. O resultado disso foi que, antes da pandemia, cerca de 30% da população soteropolitana não tinha recursos para acessar o transporte público. Sei que, no Rio, por exemplo, o sistema de integrações é muito ruim – o que também gera um custo mais elevado para o usuário. As consequências deste quadro são o aumento dos engarrafamentos e outros problemas. Desde 2015, o transporte público foi incorporado ao artigo sexto da Constituição como um direito social. Se temos sistemas gratuitos de saúde e educação, em que os custos de operação são compartilhados pela sociedade, por que a mobilidade ainda é vista como mercadoria?

A discussão sobre tarifa zero no transporte público se relaciona com este cenário?

Sim. Há, pelo menos, 3 perspectivas para abordar essa questão da tarifa zero. Um é o mais radical, que entende as metrópoles devem ser apropriadas por aqueles que a produzem e vê a possibilidade como uma denúncia de exclusão de um capital que escolhe quais trabalhadores serão integrados e como. Uma outra visão mais pragmática e presente em locais como França e Alemanha vê a tarifa zero como um instrumento de transição ecológica. Aqui, a ideia é usá-la para reduzir a poluição gerada por carros. Há também um terceiro olhar, do ponto de vista econômico e não necessariamente de esquerda que coloca o seguinte: as cidades europeias têm áreas centrais abandonadas. Isso gera deterioração e empobrecimento destes espaços, processos que podem ser revertidos com a gratuidade nos transportes e a consequente reorganização da dinâmica econômica destas regiões com as mudanças que ela gera. Um raciocínio parecido já leva cidades pequenas do Brasil a adotar a medida para atrair empresas, numa espécie de desoneração fiscal que tem funcionado. Mas existem várias abordagens. Há quem veja a tarifa zero como ferramenta de transferência de renda, já que ele aproxima as oportunidades dos mais necessitados. Outros já entendem como um imposto que grandes empregadores e quem anda de carro paga pelo uso privilegiado que faz da cidade. Pessoalmente, sou contra pedágios em áreas urbanas, por entender que eles restringem o direito à cidade. Mas vejo a taxação como um caminho viável para tarifa zero sim.

E como a tarifa zero poderia beneficiar a população negra?

A população negra no Brasil é obrigada a conviver com os piores indicadores em saúde, educação e outras áreas. Por isso, algo que beneficie os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade sempre têm impacto na vida de pretos e pardos. Mesmo iniciativas com um recorte social tem um efeito direto neste grupo, que hoje dedica grande parte de sua renda aos gastos com transporte. De forma direta, a população negra seria a maior beneficiada pelo barateamento ou fim da tarifa de transporte público. Por conta de todo este cenário, assim como defender o SUS é defender a população negra, defender o transporte público é defender a população negra. Além disso, há outro ponto importante: se todos usam o mesmo serviço, a pressão pela qualidade dele é maior. Precisamos ter outras camadas da sociedade brasileira no transporte público até por uma questão estratégica. Andar de ônibus não pode ser coisa de pobre. Isso denuncia o caráter da nossa civilização. O transporte deve ser um fator de integração, um direito e não uma mercadoria ou um privilégio.

A produção de dados de raça na área de mobilidade em Salvador é satisfatória?

A última pesquisa origem-destino de Salvador com dados abertos é de 2012. De lá para cá, houve concessão de modais de transporte público e um PDTU foi elaborado com base em dados precários e sem muita informação sobre a questão racial. Precisamos de dados atualizados para os novos planos. Com este governo anticiência, corremos o risco de não ter censo em 2020 e, sem ele, não poderemos acompanhar os reflexos do projeto de autoafirmação que esteve em curso nos últimos 10 anos. Por outro lado, a falta de uma obrigatoriedade de coleta de dados ligados à raça nas pesquisas origem-destino faz com que o racismo não seja um ponto central nestes levantamentos e, consequentemente, não tenhamos uma teoria de planejamento urbano atravessada por esta questão. Precisamos de uma teoria urbana e instrumentos que levem em conta a segregação socioespacial presente em nossas metrópoles e que atinge a população negra. Isso é importante até para que a gente possa definir que tipos de dados precisamos buscas. Hoje, o censo nos diz onde estão os negros, a renda deste segmento e outras informações. Mas não sabemos qual é a qualidade do transporte público que eles usam, a frequência com que o serviço é oferecido, as formas alternativas de mobilidade deste grupo ou mesmo os deslocamentos mais comuns dele. O que o transporte existente permite que estas pessoas acessem? Com que eficiência esse acesso se dá? São ligações diretas ou viagens em zigue-zague para pegar mais gente, como acontece em Salvador? Temos a nossa própria experiência que conta parte dessa história, mas não conseguimos ainda transformar isso em dados.

Que situações um trabalho deste tipo poderia revelar?

O transporte não começa no embarque nem termina no desembarque. Ele envolve questões como a qualidade do ponto de ônibus, que é ruim nas periferias e boa em áreas nobres. Ou mesmo a situação das calçadas, que apresentam mau estado e não tem iluminação adequada longe dos centros, e da segurança pública, que é um ponto especialmente complicado para mulheres. É a chamada microacessibilidade, a mobilidade no trajeto entre a sua casa e o local de acesso ao meio de transporte. A qualidade do equipamento urbano é fundamental para pessoas com deficiência, idosos e crianças se integrarem à cidade. Em geral, os planejadores se eximem desta responsabilidade, que é algo que compete a eles. Em Salvador, a gente tem ônibus com ar-condicionado no circuito superior e veículos degradados, sujos e sucateados no circuito inferior.

Que situações um trabalho deste tipo poderia revelar?

Salvador é uma cidade com muitos vales e há bairros populares no centro da cidade. Por isso, o transporte público não pode se resumir a ônibus e metrô. Falta ligação marítima entre as localidades da Baía de Todos os Santos e ascensores entre as partes altas e baixas que possam substituir o deslocamento precário que existe hoje, muitas vezes feito por meio de escadas e outras formas. Para o deslocamento dentro da cidade, me inspiro muito no exemplo dos teleféricos de Cali e outras cidades colombianas e menos no modelo presente no Rio, que é mais um espetáculo do que uma solução. É preciso integrar quem hoje se desloca por meio de outros modais e se encontra fora do sistema. Acho cruel, por exemplo, que se criminalize iniciativas como o mototáxi, que tenta se formalizar aqui agora. É preciso fornecer condições de trabalho para estas pessoas e pensar o transporte público de forma integrada, para reduzir os riscos e custos.

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