Como o machismo combinado ao racismo pode ter consequências decisivas na organização dos deslocamentos de mulheres negras no país
Esta é a quarta reportagem do projeto A Cor da Mobilidade, que consiste em uma série de artigos acompanhados de entrevistas que vão abordar o impacto do racismo na mobilidade.
O uso da bicicleta é menos comum entre meninas pretas e pardas. A constatação é de Jô Pereira, Jamile Santana e outras ativistas negras. A menor renda média de pretos e pardos e o acesso preferencial dos homens às bicicletas são fatores que colaboram para que meninas negras não aprendam a pedalar.
“Eu mesma tenho 7 irmãos homens, nós nunca tivemos uma bicicleta em casa, mas só eu não sabia pedalar”, conta Jamile Santana, coordenadora de mobilidade da rede de mobilização coletiva Afro Ciclo. A longo prazo, a ausência desta experiência é um dos motivos que impede que as mulheres negras tenham a bicicleta à disposição como alternativa para seus deslocamentos.
Fundadora da empresa Multiplicidade Mobilidade Urbana, Glaucia Pereira informa que ter uma jornada de trabalho incompatível com o uso do modal é uma das razões que explicam o fato de pretas e pardas seguirem longe das bicicletas na vida adulta. “Na prática, os homens negros pedalam porque não têm dinheiro para passagem e muitas mulheres negras sequer aprendem a andar de bicicleta”, diz ela.
Outras razões contribuem para a perpetuação desta situação. No Recife, por exemplo, 21% das negras moram próximas à infraestrutura cicloviária, de acordo com o ITDP – contra 24% da população total. Em locais como Rio de Janeiro, esta diferença chega a 5 pontos percentuais. Já baixa para as cidades como um todo, a cobertura ainda menor para pretas e pardas dificulta o acesso delas ao modal. Um estudo realizado por pesquisadoras da USP com base em dados da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo mostrou que a implantação de infraestrutura para bicicletas se refletiu no aumento da quantidade de mulheres que usam o veículo como meio de transporte na cidade, especialmente na ligação entre bairros centrais e periféricos.
Algumas iniciativas tentam reverter este quadro. Projetos como o Pedal na Quebrada, tocado em São Paulo por Jô e o Afro Ciclo, do qual Jamile é participante na Bahia, atuam neste sentido. Neles, as participantes aprendem a usar uma bicicleta e criam uma rede de apoio mútua, alcançando resultados que vão muito além da mobilidade.
“Eu tive uma aluna que era agredida pelo marido, viu o cartaz do nosso projeto e decidiu se inscrever”, conta Jamile. “Nas nossas conversas, percebi que havia ali uma situação de violência e trouxe para a oficina reflexões sobre a questão da agressão. Ela fez mais 2 aulas, aprendeu a pedalar, deixou o marido e passou a viver com a filha”, revela ela.
Alvos prioritários do preconceito
O Brasil tem 50 milhões de mulheres pretas e pardas. O grupo é, inclusive, maior que o segmento masculino dentro da comunidade negra no país. Entretanto, tudo isso não impede que elas sejam o alvo prioritário do preconceito. Com menos oportunidades, as negras sofrem ainda mais com os efeitos da desigualdade, inclusive no acesso ao transporte público.
Uma questão que restringe os deslocamentos de pretas e pardas são as falhas relacionadas à chamada microacessibilidade. O mau estado de conservação das paradas e a iluminação ruim das ruas são ainda mais comuns nas periferias, onde a maior parte delas vive. Todas essas questões colaboram para a sensação de insegurança, agravada pela histórica sexualização dos corpos negros. Jô lembra de sofrer diferentes formas de assédio desde os 11 anos de idade em ônibus, por exemplo.
Uma pesquisa realizada com mulheres periféricas da Região Metropolitana do Recife, publicada pelo ITDP em 2018, apontou a espera nos pontos de ônibus e a caminhada para casa após o desembarque do transporte público como as duas situações que geravam maior medo entre as entrevistadas. “A parada de ônibus é bem mais insegura do que você estar dentro de uma estação, entendeu? Quase ninguém vê falar de assalto dentro de uma estação, mas em parada de ônibus sim”, relatou uma delas. Na região metropolitana da capital pernambucana, as negras representam quase 60% das mulheres.
Situações como essas exigem que pretas e pardas tenham um cuidado redobrado em suas movimentações por nossas cidades. “Quando eu voltava à noite da faculdade, meu pai sempre ia me buscar no ponto de ônibus, por conta do perigo real ligado a uma mulher andar sozinha à noite no bairro onde morávamos”, relembra Kelly Fernandes, analista de mobilidade urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Devido à estrutura machista da nossa sociedade, as mulheres são responsabilizadas pelo trabalho reprodutivo, que inclui as tarefas domésticas e de cuidados com filhos e parentes, o que exige delas deslocamentos para diferentes destinos – creches, escolas, serviços de saúde, compras para o lar –, enquanto a movimentação dos homens é mais restrita ao circuito casa-trabalho.
Isso se agrava no casos das mulheres negras, que gastam mais tempo com estas atividades do que as mulheres brancas, de acordo com dados do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, publicado pelo Ipea em 2017. Porém, a forma como as viagens de ônibus e outros modais são distribuídas ao longo do dia indica que o sistema se ajusta mais às necessidades masculinas do que femininas, já que a maior parte dos deslocamentos está concentrada nos horários de pico, por exemplo.
“Temos cidades planejadas por homens para homens”, resume a arquiteta e urbanista Amanda Corradi, integrante da Associação de Ciclistas Urbanos de Belo Horizonte. “Falta entender melhor o deslocamento das mulheres, que muitas vezes são mães e têm necessidades específicas”, acrescenta ela.
Outros obstáculos
Para além dos problemas citados, a própria condição social da mulher negra é outro impedimento à sua mobilidade. Segundo o levantamento publicado pelo Ipea, o percentual de pretas e pardas analfabetas com 15 anos ou mais era o dobro do verificado entre brancas e 27,3% das negras não tinham renda própria. As duas características reduzem a independência das integrantes do grupo e dificultam seus deslocamentos.
O relatório informa que a taxa de desocupação entre negras era de 13,3% em 2016 – contra 6,8% entre homens brancos. Sem ocupação, pretas e pardas têm menor acesso a dinheiro e, consequentemente, menor autonomia de circulação. Segundo o mesmo documento, elas também recebem menos quando conseguem um trabalho. A renda média de uma empregada doméstica negra equivale a 84% da renda média de uma trabalhadora branca com a mesma função, segundo o estudo.
Diante deste quadro, coletivos formados por pretas e pardas e outras iniciativas voltadas para mulheres – como a Terça das Manas, de Belo Horizonte – buscam transformar a situação atual. Muitas delas se pautam pelo feminismo intersecional, que procura identificar e combater as consequências da interação do sexismo com o preconceito racial e outros tipos de discriminação.
“Homens brancos são maioria nos espaços que discutem mobilidade na cidade e isso em grande parte das vezes não é uma questão para eles”, afirma Amanda. “Acredito que aumentar a representatividade destes espaços de discussão também pode ajudar a mudar este cenário”, defende ela.
Por Saulo Pereira Guimarães
Confira as entrevistas completas da reportagem: