Mais expostos à poluição e suas consequências, pretos e pardos ainda têm presença reduzidas nos debates sobre a crise climática
Esta é a quinta reportagem do projeto A Cor da Mobilidade, que consiste em uma série de artigos acompanhados de entrevistas que vão abordar o impacto do racismo na mobilidade.
Foto: Bruno Santos/Folhapress
A jornalista Andréia Coutinho Louback tinha ido assistir a um evento sobre mobilidade sustentável no Museu do Amanhã, no Centro do Rio. Durante a atividade, vários palestrantes defenderam a importância das bicicletas e do transporte público para a cidade. As apresentações se estenderam até as 22h e, no fim, a maior parte dos especialistas seguiu de carro para casa – enquanto Andréia foi para estação de trem.
“Aquela situação me provocou uma reflexão. Quem usava o transporte público não estava participando do debate”, conta ela, sobre um problema que também tem uma faceta racial. Quando se considera que pretos e pardos são maioria entre os passageiros de ônibus, metrô e outros modais, percebe-se que são eles que estão deixando de ser ouvidos nas discussões sobre o impacto ambiental da mobilidade em nossas cidades.
Um levantamento realizado pela empresa de tecnologia Navegg em 2017 identificou que 75% dos brasileiros interessados em adquirir veículos pertencem à classe A/B e que 58% deles têm diploma universitário. É um perfil bem diferente do apresentado pela população negra, que representa menos de um terço dos 10% mais ricos do país e só 44% dos brasileiros que cursam graduação – de acordo com dados do IBGE e do IPEA. Um segundo estudo, do Instituto Energia e Meio Ambiente, aponta que os automóveis são os principais geradores de poluição do transporte rodoviário da cidade de São Paulo. De acordo com a análise, os veículos respondem por mais de 80% da sujeira liberada pelo trânsito entre 17h e 18h – contra apenas 15% dos ônibus.
Diante desses fatores, tudo indica que a emissão de poluentes por deslocamentos de pretos e pardos é menor do que aquela gerada por brancos no Brasil.
Transporte público
Foto: Vinicius Pereira/FolhaPress
Especialistas veem o investimento em transporte público como uma alternativa para reduzir a poluição nas grandes cidades. Se tivessem maior qualidade, serviços de ônibus, trem e outros modais poderiam fazer com que motoristas optassem por deixar o carro em casa com mais frequência, o que colaboraria para uma menor emissão de gases causadores do efeito estufa.
“É muito clara a diferença entre quem voa de avião e quem viaja de trem, metrô ou de ônibus”, afirma Paíque Duques Santarém, doutorando em arquitetura e urbanismo pela UnB e membro do Movimento Passe Livre de Brasília. Na opinião do especialista, no Brasil, quanto menos conforto uma empresa aérea oferece em seus voos, mais seu serviço se torna parecido com o de uma empresa de ônibus média.
Além do aumento da qualidade nos deslocamentos, outro mecanismo que pode tornar o transporte público mais atraente para os passageiros é a discussão sobre o custo da tarifa. Uma passagem mais barata pode reduzir o número de carros e motos em circulação, o que se reflete em um impacto positivo para o meio ambiente. É certo que a eficácia desta e de outras medidas cresce em função da oferta das linhas de ônibus, metrô e outros modais. Afinal, quanto mais pessoas puderem trocar seus veículos por meios coletivos, maior será o volume de poluição que deixa de ser emitido. Doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, Daniel Caribé relata que isso já acontece em países como Alemanha e França.
Outro efeito colateral positivo de um transporte público mais atraente é a redução do impacto da mobilidade nos gastos. Embora não tenha relação direta com a questão ambiental, este ponto é especialmente importante para famílias negras, que são maioria entre as mais pobres. Um levantamento realizado em 2017 pelo IBGE apontou que o item é a 2ª maior despesa nos orçamentos do país – atrás apenas de moradia. Na média, habitação responde por 37% dos gastos e transporte por 18%. Uma pesquisa feita em 2020 pelo ITDP nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro mostrou que, 3 anos depois, este quadro segue o mesmo para pretos e pardos. Nas duas cidades, o impacto do transporte público na renda média de pessoas negras varia entre 10% e 20%.
“As famílias estão se endividando para participar das cidades. É o dinheiro gasto na compra e manutenção do carro, na passagem de ônibus ou mesmo nas corridas de aplicativo. No fim, a pobreza é agravada pela falta de um transporte público de qualidade”, diz Caribé. “Há quem veja a tarifa zero como ferramenta de transferência de renda, já que ele aproxima as oportunidades dos mais necessitados.”
Poluição e Justiça Climática
Se o uso de veículos automotores é majoritariamente branco e têm um impacto cada vez mais claro no meio ambiente, os dados mostram também que negros são mais atingidos que o resto da população pelos efeitos colaterais da poluição. Um trabalho desenvolvido por pesquisadores da USP mostrou que usuários de ônibus, metrô e carros particulares estão expostos a níveis diferentes de poluição.
Enquanto os primeiros enfrentam uma concentração maior de carbono oriunda das próprias vias, quem viaja de metrô está mais em contato com material particulado resultante do atrito dos veículos com os trilhos a cada freada. Já nos automóveis, mecanismos como o uso de aparelhos de ar-condicionado com janelas fechadas isolam o ambiente e permitem indicadores melhores neste sentido. Como menos negros têm seus próprios veículos, mais pretos e pardos estão expostos a piores condições de locomoção.
Além disso, entidades como o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas já relacionam o impacto no meio ambiente da emissão de poluentes por meios de transporte e outras atividades humanas à maior ocorrência de enchentes e outros eventos extremos em nossas metrópoles. A prefeitura do Rio tem uma lista dos 50 maiores acidentes causados por chuvas na cidade entre 1966 e 2016. Deles, pelo menos nove ocorreram em favelas, áreas que concentram população negra. No evento mais recente citado, 30 pessoas morreram em um deslizamento no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa em 2010.
Episódios como este inspiram a discussão sobre justiça climática, conceito que pensa como proteger os mais vulneráveis às transformações do planeta e incorporá-los a esta discussão sobre meio ambiente. “Quando observamos a situação da população negra, a qual eu pertenço e me incluo, há uma redução à vulnerabilidade apenas, que invisibiliza a participação em políticas climáticas e ambientais”, comenta Andréia.
Ativista da questão ambiental, Andréia entende que ter mais pretos e pardos nos debates sobre meio ambiente é essencial para reverter ocenário atual. Ela acredita que a maior conscientização em relação ao tema se refletiria em escolhas mais limpas por parte desta comunidade e mais pressão por novas políticas públicas ligadas ao tema.
Um futuro climaticamente seguro precisa ter igualdade e esse é valor inegociável, diz a jornalista.
Por Saulo Pereira Guimarães
Confira as entrevistas completas da reportagem: