Parar sobre a faixa de pedestres, passar o cruzamento com o semáforo vermelho, acelerar enquanto um pedestre atravessa, não dar a preferência. Seja por descuido ou premeditadamente, certamente você já foi pivô de uma ou mais dessas situações. Sem dúvidas, o trânsito tem o poder de transformar o cidadão mais pacato em um motorista com nervos à flor da pele, alguém pronto para tornar ainda mais distante a tão almejada mobilidade. Há quem acredite que isso acontece porque, consciente ou inconscientemente, o condutor se veja no papel de protagonista de um sistema que é completamente feito para ele.“A mudança de personalidade ao assumir a direção de um carro é algo que ocorre com frequência. Quem nunca se surpreendeu com a direção perigosa de um amigo que é cuidadoso, gentil e calmo?”, questiona Clarisse Cunha Linke (foto), diretora-executiva do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento). Além de ressaltar que a infraestrutura para veículos recebe mais investimentos do que qualquer outro meio de transporte, ela diz que as relações de poder quanto ao uso da rua se tornaram muito intensas sobretudo em razão da crescente valorização do carro enquanto bem de consumo.
Mas se engana quem pensa que esse um cenário é recente, fruto de uma sociedade sem tempo e estressada. Linke lembra que o papel do motorista no trânsito e até mesmo essa tal síndrome da dupla personalidade já eram discutidos em 1950. Neste ano, o desenho “Motor Mania” mostrava o pacato pedestre Sr. Walker assumindo a pele do maluco motorista Sr. Wheeler, ambos interpretados pelo personagem Pateta. De forma bem irônica, a animação dos Estúdios Walt Disney ressalta que o dono do pedaço “Sr. Wheeler” é só mais um ser indefeso quando está longe da sua poderosa “armadura”, isto é, de seu carro.
De acordo com Linke, o condutor precisa aceitar que o maior tem a responsabilidade de zelar pela segurança do menor, conforme determina a lei. O que acontece, entretanto, é completamente diferente disso: o caminhão aperta o carro, que tira o espaço do motociclista; e todos eles agridem pedestres e ciclistas (confira abaixo a pirâmide de proteção criada pelo ITDP). “O respeito é a base da boa convivência, todavia não é o que vemos diariamente nas ruas das cidades brasileiras”, explica. Para ela, o caminho para uma real educação no trânsito passa pela fiscalização e pela punição de motoristas infratores.
A mobilidade pode civilizar motoristas
Se está claro que as pessoas costumam se transformar quando estão em um carro, que tal então deixá-las que cada vez menos tempo dentro dele? Clarisse Cunha Linke indica que precisamos de políticas públicas para melhorar a qualidade do transporte público e desestimular o uso do automóvel, entre elas a redução da oferta de vagas de estacionamento, a criação de pedágios urbanos e restrições de circulação. “Mais carros levam a maior congestionamento, poluição, consumo de combustível e emissões de gases de efeito estufa, todavia, enquanto o transporte público não for confiável e não oferecer o mínimo de qualidade e segurança, esse cenário não será alterado”, explica.
A diretora-executiva do ITDP vai além e afirma que o setor privado também é essencial para essa mudança, seja estabelecendo horários alternativos de trabalho ou permitindo que seus funcionários façam home office em alguns dias da semana, entre outras coisas. Já o setor público, segundo ela, pode possibilitar e estimular integrações de transporte – ou seja, incentivar o motorista a fazer parte do deslocamento de carro e, depois, seguir o restante do trajeto de transporte público, a pé ou de bicicleta. “Uma cidade que possui um bom sistema de transporte é aquela onde todos podem optar pelo modo de transporte de sua preferência e se deslocar com eficiência e segurança”, completa Linke.
Entrevista publicada originalmente no Blog da Mobilidade Inteligente no dia 7 de junho de 2017.