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“O sistema de transporte público está a serviço do racismo estrutural”, diz Kelly Fernandes Analista de Mobilidade Urbana do Idec

O sistema de transporte público está a serviço do racismo estrutural. A afirmação é da arquiteta e urbanista Kelly Fernandes, analista do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). 

Na entrevista para a série A Cor da mobilidade, a especialista explica como a organização do território, dos deslocamentos e até dos orçamentos nas cidades brasileiras dificulta o acesso da população negra a novos lugares sociais, econômicos e políticos. Ela mostra ainda como a falta de dados impede que a desigualdade seja melhor combatida e aborda outras questões, como os impactos da pandemia de coronavírus nas empresas de transporte.

Há quanto tempo você trabalha com mobilidade?

Tenho 31 anos e trabalho na área de mobilidade há 7 anos. Estou há 1 ano e 3 meses no Idec. Antes de trabalhar lá, ajudei na elaboração de planos de mobilidade e projetos funcionais de sistema metro-ferroviários e de infraestrutura para mobilidade ativa em algumas cidades. Sou formada em arquitetura e urbanismo e especialista em economia urbana e gestão pública pela PUC-SP. 

Atualmente, quais são suas principais áreas de atuação?

No Idec, monitoramos muito a questão do transporte público coletivo. Principalmente ônibus, mas também trem e metrô, de forma mais pontual. Nosso olhar passa pela intermodalidade, essa visão integrada do sistema. A questão da tarifa também é um eixo importante, já que ela pode ser uma barreira para o acesso das pessoas ao serviço. Sem o transporte público, o cidadão não consegue acessar outros direitos – como saúde, emprego e lazer, por exemplo. Acompanhamos o processo de licitação das linhas de ônibus em São Paulo desde 2015, fazemos pesquisas e atuamos também na parte de advocacy, inclusive no Congresso Nacional. Atualmente, a grande discussão por lá é sobre o financiamento do transporte coletivo na pandemia.

Por que essa discussão está tão em evidência no momento?

Nas cidades em que a tarifa é a única fonte de financiamento do sistema de transporte público coletivo, vai faltar dinheiro para esse pagamento. Há municípios com sistemas diferentes. Por exemplo, Maricá, tem uma empresa pública de ônibus que opera com recursos públicos. Já São Paulo tem 32 empresas particulares remuneradas por serviço prestado, que ficam com o valor pago pelos usuários e recebem um reembolso da prefeitura pelas gratuidades. A pandemia deve antecipar a mudança deste modelo inclusive, que será substituído por um com pagamento em função dos gastos das empresas com pneu, diesel e outros insumos. O fato é que, em muitas cidades, o arranjo em vigor hoje não permitirá que as empresas de ônibus sigam funcionando.

Como todo este cenário se relaciona com a questão do racismo?

Como o racismo no Brasil é estrutural, seu impacto está em tudo. Basta querer ver. Fizemos uma pesquisa dos editais de licitação de mobilidade das 12 cidades brasileiras de maior população. Na maioria das vezes, os contratos vinculam o valor da tarifa apenas a questões econômicas. Isso gera sistemas baseados no preço da passagem e que têm um impacto maior sobre a população mais empobrecida, que é majoritariamente negra e periférica. O Danilo França tem trabalhos de mestrado e doutorado que mostram que, na cidade de São Paulo, pessoas negras não costumam morar nas mesmas áreas que brancos, mesmo quando têm mais dinheiro. Em geral, elas moram mais longe do Centro, gastam mais com transporte até o trabalho, perdem mais tempo na viagem e têm menor acesso ao uso de bicicletas e outras alternativas de locomoção no dia a dia. Por isso, o território é um componente muito importante na discussão sobre o racismo. Não é que todo negro more na periferia, onde há menos infraestrutura e oportunidades. Mas grande parte vive lá sim e esta é uma distorção que precisa ser reconhecida pelas políticas públicas.

Quais são os efeitos colaterais desta situação que você descreveu?

Na prática, tudo isso se reflete em imobilidade social. É uma forma de discriminação indireta, barreiras que impedem que as pessoas cheguem a novos lugares sociais, econômicos e políticos. Outro fator importante para esta imobilidade é a falta de dados. Pesquisas sobre índices de mobilidade, como a Origem e Destino do Metrô de São Paulo, não trazem indicadores relativos à raça. Isso é uma falha imensa. Quem planeja mobilidade e discute o racismo é obrigado a trabalhar com estimativas feitas a partir dos números do censo. Situações assim fazem com que o sistema de mobilidade fique a serviço do racismo estrutural. É possível pensar na própria subordinação estabelecida entre os territórios. O transporte público ainda é pensado para levar as pessoas dos chamados “bairros-dormitórios” para o Centro. Se você entende acesso a transporte como vetor de desenvolvimento, a ausência de ligações entre as periferias impede que essas áreas se desenvolvam de forma autônoma. Não acho que tudo isso seja coincidência. 

Que evidências você enxerga neste sentido?

Embora o orçamento público de São Paulo não seja regionalizado, dá para identificar a predominância de determinadas áreas em detrimento de outras. Não sabemos se bairros com menos infraestrutura de mobilidade instalada recebem mais dinheiro do que outros que já contam com mais recursos nesta área. Se não houver esta diferença, fica reforçada a subordinação entre os territórios e se torna mais difícil corrigir assimetrias. Isso prejudica os negros que, como já vimos, são maioria nas áreas mais pobres. A Política Nacional de Mobilidade tem equidade e igualdade como princípios. Mas, na hora do vamos ver, do orçamento, este discurso não funciona na prática. Como não temos os dados exatos, não sabemos quais grupos são prioritários para reduzir as desigualdades em mobilidade. O que está claro é que a briga por orçamento também é uma briga por reparação histórica e justiça social.

De que outras formas a relação entre território e mobilidade reflete o racismo?

Até pela minha formação, não sei pensar raça sem falar em território. Podemos pensar, por exemplo, na questão da violência, muito presente nas periferias. Ela afeta a mobilidade porque faz com que as mães tenham medo que seus filhos estejam nas ruas. Às vezes, tomar um sorvete à noite na periferia pode ser algo muito perigoso. Tenho um exemplo na minha própria trajetória. Quando eu voltava à noite da faculdade, meu pai sempre ia me buscar no ponto de ônibus, por conta do perigo real ligado a uma mulher andar sozinha a noite no bairro onde morávamos. Essa é uma questão especialmente complicada para a mulher. Em resumo, o lugar impõe as condições. Apesar delas, os moradores criam jeitos de reinventar suas relações com seus próprios territórios.

Como se dá a reinvenção destas relações?

Hoje, há saraus nas periferias, disputas de slam. Eu tenho um amigo que criou uma hamburgueria em que os pratos têm os nomes dos bairros da quebrada. Estas pequenas iniciativas desafiam a narrativa estabelecida sobre estes territórios. São trabalhos tocados por pessoas incríveis, massacradas diariamente pelo trânsito, violência e outros problemas de nossas cidades.

Como você vê o aumento recente das discussões sobre racismo?

Fico animada de ver o debate sobre racismo estrutural crescer porque é uma chance que temos de discutir melhor esses problemas. O racismo ainda não é um tema forte nas discussões sobre mobilidade urbana. Mas, no contexto da pandemia, também enxergo este movimento com muito ceticismo. A cidade de São Paulo não tem capacidade de enfrentar a crise sanitária no transporte público. Falta vontade política e econômica e o déficit é muito grande. O que vejo com bons olhos são as iniciativas surgidas da própria sociedade. Se antes o discurso neoliberal estava ganhando adeptos, a situação que vivemos agora nos força a prestar atenção ao coletivo e à importância do Estado atuar em defesa da sociedade. O senso de vizinhança, de identidade e a cooperação são respostas possíveis à sensação de fragilidade trazida pelo vírus. O caso de Paraisópolis é um exemplo claro disso. No Distrito Federal, o Movimento Passe Livre tem fiscalizado a oferta de álcool gel e outras condições de higiene nos ônibus. Tudo isso é importante porque mobilidade também se relaciona com saúde.

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