No Brasil, políticas públicas induzem o aumento do número de automóveis nas ruas e penalizam o usuário de transporte coletivo
Uma das grandes inovações da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PMNU), de 2012, é a previsão de que os municípios podem aplicar mecanismos de subsídio cruzado entre o transporte motorizado individual e o transporte público. Inovação porque é uma medida que pode atenuar um problema que tira o sono dos planejadores urbanos: o alto custo do transporte individual motorizado para toda a sociedade. Índices de mortalidade altíssimos, congestionamentos, emissão de gases poluentes, perda da produtividade e redução da qualidade de vida, etc.Outra questão sobre a qual os especialistas se debatem nas administrações municipais e nas universidades é como baratear a tarifa do transporte público para o usuário. Em geral, os custos dos serviços de transporte público no Brasil são cobertos pelas tarifas pagas pelos usuários. Uma rara exceção é a cidade de São Paulo, que subsidia 31% dos custos do sistema municipal de ônibus. Entretanto, o recurso de São Paulo sai do orçamento municipal.
No Brasil, os cofres públicos têm subsidiado o transporte, mas de forma errada. A isenção de impostos para a aquisição de veículos e para a redução do preço de combustíveis, assim como a oferta farta de estacionamento gratuito nas vias públicas (que somam de 86% a 90% do total subsidiado para o transporte urbano no Brasil) , são exemplos de políticas públicas que tornam o carro uma opção atraente para boa parte da população.
De outro lado, os únicos subsídios que incidem sobre o transporte público referem-se à isenção de impostos na aquisição de ônibus urbanos e o barateamento da tarifa de energia para as operadoras de sistemas sobre trilhos. Como inverter essa lógica e garantir o subsídio para o transporte público, reduzindo o valor da tarifa sem estrangular as contas públicas?
O duplo desafio é baratear o custo do transporte público para os usuários e desestimular o uso do transporte motorizado individual. E uma das soluções possíveis é essa possibilidade prevista na PNMU: cobrar dos usuários de carros um pedágio sobre a utilização das infraestruturas viárias urbanas. Isso não apenas geraria novos recursos entrando em caixa para as políticas de mobilidade como também desencorajaria o uso do automóvel nos grandes centros urbanos.
O ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) comparou o gasto mensal com transportes de uma pessoa que mora em Niterói e precisa deslocar-se diariamente para trabalhar. A escolha entre carro e transporte público rende uma economia pequena na segunda opção, ainda que na primeira o usuário precise pagar pedágio.
Os números demonstram como as diferentes esferas de governo estabelecem políticas de mobilidade que penalizam toda a sociedade e beneficiam o usuário do transporte individual motorizado.
Para ilustrar este cenário na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), tomemos como exemplo uma pessoa que mora no bairro de Icaraí, em Niterói, e trabalha no Centro do Rio de Janeiro, duas das principais zonas de geração e atração de viagens na RMRJ.
Realizando este trajeto de automóvel pela Ponte Rio-Niterói, são percorridos diariamente cerca de 40 km, sendo 20 km de ida e 20 km de volta. Para calcular o custo diário deste percurso utilizando o carro, tomaremos apenas os custos diretos de combustível, pedágio e estacionamento na via, excluindo os custos indiretos, como depreciação do valor do veículo, por exemplo. Considera-se para o cálculo um consumo médio de 11,4 km/L de gasolina de um automóvelcompacto na cidade e o preço médio do combustível para o mês de julho em R$ 4,19 no município de Niterói, já incluindo o acréscimo anunciado pelo Governo na última quinta-feira (20 de julho), de R$ 0,41 por litro referente a alíquota de PIS/Cofins que incide sobre a gasolina. Para estes dados, portanto, calcula-se um custo diário de combustível de R$ 14,70 neste percurso. Para estimar o custo diário de estacionamento na via, utilizaremos os dados do “Inventário e utilização de vagas de estacionamento em vias públicas no Centro do Rio de Janeiro”.
No sistema rotativo de vagas do Rio de Janeiro (Rio Rotativo) – que deveria limitar o período máximo em duas horas -, a fiscalização é ineficiente. Dados do estudo apontam que um automóvel ocupa uma vaga de estacionamento por um período médio de 4,03 horas na região central. Considerando um período de trabalho de oito horas e o preço atual da tarifa do sistema Rio Rotativo em R$ 2,00 para os diferentes tempos de permanência (2 horas para alta rotatividade, 4 horas para média rotatividade e período único para baixa rotatividade), chegamos a um custo diário de R$ 4,00 pelo estacionamento em via pública (2 tíquetes de R$ 2,00 para períodos de média rotatividade).
Por fim, o custo do pedágio na Ponte Rio-Niterói, reajustado a partir de 1º de junho, é de R$ 4,10, sendo cobrado apenas no sentido Rio de Janeiro – Niterói. Portanto, para o caso ilustrado neste exemplo, o custo diário total de combustível, estacionamento e pedágio para o trajeto casa-trabalho-casa utilizando automóvel é de R$ 22,80.
Tomemos agora o mesmo exemplo para estimar os custos diários para realizar este trajeto utilizando o transporte público. Considerando que o passageiro utilize um ônibus municipal de Niterói e integre com o sistema de barcas na Estação Praça Arariboia, para chegar ao Centro do Rio de Janeiro, o custo tarifário total será de R$ 9,80 (R$ 3,90 do ônibus municipal + R$ 5,90 das barcas). Calculando para o trajeto de ida e volta, o custo diário será de R$ 19,60. Caso o passageiro utilize o Bilhete Único Intermunicipal, que permite a integração entre dois modos de transporte por meio de uma tarifa única para pessoas com renda mensal máxima de R$ 3.209,70, o custo por trajeto será de R$ 8,55 e o custo total diário de R$ R$ 17,10.
A diferença entre o custo diário para realizar este trajeto utilizando automóvel e utilizando o transporte público para aqueles que não estão incluídos no benefício do Bilhete Único Intermunicipal é de apenas R$ 3,20, ou 14%.
Esta pequena diferença ilustra a ausência de uma política que priorize o uso do transporte público na região metropolitana do Rio de Janeiro, ao não lançar mão de mecanismos de cobrança dos usuários de automóvel pelo uso da infraestrutura viária que permitam o subsídio e tarifas mais baixas nos transportes coletivos, conforme prevê a PNMU.
Ao definir que a tarifa do pedágio na Ponte Rio-Niterói seja 59% mais barata que a tarifa social das barcas, considerando o trajeto de ida e volta, por exemplo, o Estado induz o maior uso do carro em detrimento do transporte público. Esta política pode ser um dos fatores que explicam a redução de 14% no número médio de passageiros transportados nas barcas entre 2015 e 2016 e o aumento de 4,1% no fluxo mensal de automóveis na ponte no mesmo período, quando o preço do pedágio caiu de R$ 5,20 para R$ 3,70 em virtude de uma nova licitação ocorrida em junho de 2015.
O recente aumento no imposto incidente sobre os combustíveis também desconsidera a priorização do transporte público sobre o individual motorizado. Ao elevar a alíquota de PIS/Cofins sobre o preço do diesel em R$ 0,21 por litro, o governo acaba forçando um aumento dos custos do transporte público e do transporte de cargas. Mesmo o aumento do imposto sobre a gasolina não sinaliza um reinvestimento do valor arrecadado sobre o uso do automóvel em melhorias ou barateamento de tarifa no transporte público, visto que o anúncio do governo tem um caráter meramente arrecadatório, a fim de atingir a meta fiscal em R$ 139 bilhões de déficit primário.
Uma proposta da Frente Nacional de Prefeitos, apresentada em 2013 durante as manifestações contra o aumento das tarifas em diversas cidades, pretendia municipalizar os recursos da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), incidindo exclusivamente sobre a gasolina e destinando-os para investimento em transporte público ou barateamento da tarifa. No entanto, a proposta não avançou no Governo Federal e no último aumento de impostos sobre combustíveis a Cide acabou não sendo reajustada, mantendo-se em R$ 0,10 por litro de gasolina e R$ 0,05 por litro de óleo diesel. Atualmente, do total arrecadado com a Cide, 71% vão para o orçamento da União, e os outros 29% são distribuídos entre os estados, não sendo repassados diretamente aos municípios.
Na contramão dessa política, outras cidades ao redor do mundo já adotam há algum tempo mecanismos de cobrança pelo uso do automóvel nas vias urbanas com o objetivo de investir em novas infraestruturas de transporte público e baratear as tarifas. Um caso ilustrativo é o de Londres, que em 2003 implementou a zona de cobrança pelo congestionamento (congestion charge zone) na região central da cidade, onde os usuários de automóvel pagam uma tarifa diária – atualmente em 11,50 libras (cerca de R$ 45) – para acessar a área no período entre 7h e 18h.
O sistema foi concebido para reverter a receita arrecadada na construção de novas estações de metrô e no barateamento da tarifa de transporte público, atualmente em 1,50 libras (87% mais barata do que a tarifa para acessar de automóvel as zonas de cobrança pelo congestionamento). Como resultado, em dez anos de implantação do sistema, a cidade viu aumentar o número de passageiros de ônibus em 60%, em 42% nas viagens de metrô e 66% no uso de bicicletas, segundo dados da empresa de transporte local, Transport for London.
* Artigo publicado originalmente em parceria com o Projeto Colabora