Locais da vida em sociedade, os espaços públicos são elementos chave do bem-estar individual e coletivo. Constituem uma rede de áreas abertas como ruas, praças e parques, e também de espaços abrigados, como bibliotecas públicas e museus. Essa rede cumpre múltiplos papéis nas cidades, incluindo o lazer, o convívio social, a conservação ambiental, a circulação e as trocas econômicas. Apesar do papel vital que exercem na vida urbana, via de regra, nas cidades brasileiras encontramos espaços públicos mal conservados, com iluminação insuficiente, calçadas esburacadas e mobiliário em condições precárias. Espaços que, por si só, desestimulam seu uso e trazem prejuízos sociais e econômicos comumente subestimados pelo poder público e pela própria população.
Nossos espaços públicos são, em muitos casos, a materialização de uma série de políticas, medidas e ações implementadas de forma independente e pouco coordenada por uma variedade de organizações públicas e privadas. Os desafios fiscais enfrentados pelos municípios também contribuem para essa dificuldade de gestão e sua consequente má conservação. Questões estruturais relativas à distribuição de recursos entre União, Estados e Municípios e a baixa capacidade dos municípios para gerarem receitas próprias dificultam a criação de fontes contínuas de recursos.
Essa desvalorização dos espaços públicos reflete a falta de visão integrada e de reconhecimento quanto ao seu potencial de impacto positivo na qualidade de vida urbana, seja em aspectos de saúde pública, segurança, mobilidade ou desenvolvimento econômico. A pandemia da Covid-19, no entanto, tem trazido à tona uma série de reflexões sobre o papel dos espaços públicos. A privação de acesso durante o período de quarentena parece ter ampliado a percepção sobre o impacto que eles têm nas relações sociais, na saúde física e mental, na mobilidade urbana e na economia.
O processo gradual de retomada tem levado à ressignificação de alguns espaços no Brasil e em outros países. Transformações temporárias e permanentes foram implantadas para garantir maior segurança no deslocamento da população, tanto por meio do alargamento de calçadas, possibilitando o distanciamento físico na caminhada – como visto em Milão ou Barcelona – quanto pela criação de rotas cicloviárias emergenciais, que oferecem uma alternativa de deslocamento individual e ao ar livre para a população, a exemplo de Belo Horizonte, Bogotá e Cidade do México.
Transformações também vêm sendo implementadas para possibilitar o retorno das atividades econômicas com maior segurança. A pandemia deixou ainda mais evidente a relação intrínseca entre o comércio varejista e os espaços públicos, evidenciando que o papel catalisador de interações exercido por eles potencializam o desempenho de atividades econômicas. Se os polos comerciais de rua já dependiam da qualidade do espaço público para atrair consumidores e competir com o ambiente controlado dos shopping centers, por exemplo, agora também precisam do espaço público para exercer suas atividades com menor risco de contaminação, seja atendendo clientes e organizando filas nas calçadas, ou ocupando vagas de estacionamento e faixas de circulação de veículos com mesas e cadeiras, a exemplo de medidas implementadas em Nova Iorque, Córdoba, São Paulo e diversas outras cidades.
A necessidade de um debate amplo e plural sobre a gestão dos espaços públicos tornou-se ainda mais urgente nesse contexto, e as administrações municipais que assumirão o comando dos municípios brasileiros em janeiro de 2021 têm nas mãos a oportunidade de torná-los engrenagens centrais para uma retomada sustentável, que alia benefícios sociais, econômicos e de saúde pública.
O estudo “Parcerias para a Gestão de Espaços Públicos”, lançado pelo ITDP Brasil em setembro de 2020, apresenta reflexões sobre como o trabalho conjunto de diferentes atores pode contribuir para tornar ruas e outros espaços públicos mais atrativos, seguros e dinâmicos, e indica três eixos de atuação que podem contribuir para sua gestão: modelo de governança e estrutura institucional, gestão participativa e financiamento.
Modelo de governança e estrutura institucional
Criação de estrutura institucional dedicada à gestão integrada de espaços públicos
A criação de uma estrutura administrativa dedicada, com visão sistêmica dos espaços públicos e que considera a relação com as edificações que os envolvem, é fundamental para promover a gestão adequada dessas áreas. A existência de um órgão municipal responsável pelos espaços públicos demonstra a sua valorização e indica, para outras instâncias administrativas e para a população, a necessidade de profissionalização da sua gestão. Bogotá, Cidade do México e Buenos Aires possuem estruturas administrativas dedicadas aos espaços públicos.
Fortalecimento ou criação de estruturas administrativas locais
Por mais que uma estrutura dedicada na instância central do governo municipal seja importante para implementar políticas públicas e coordenar iniciativas sem perder a visão sistêmica, é na esfera local que as ações tomam forma, e é essencial que o território seja o elo unificador entre ambas escalas de atuação. As ruas, largos, escadarias ou calçadas são os espaços onde a atividade cotidiana acontece, onde as pessoas vivem, circulam e se relacionam.
Embora a existência de estruturas administrativas regionais, como as subprefeituras, seja comum em cidades brasileiras, essas são geralmente frágeis, ocupadas politicamente e pouco representativas do território que representam. Quando implementada de forma a garantir a participação da população na escolha dos gestores e na formulação e implementação de políticas públicas, no entanto, a descentralização administrativa colabora para a eficácia da gestão local, permite o controle social e tende a trazer resultados positivos para os espaços públicos.
Gestão participativa
Assegurar a participação da população no planejamento, implantação e gestão de espaços públicos
O fortalecimento de estruturas administrativas locais aproxima o poder municipal da população, mas não substitui a participação direta na formulação, implementação e gestão de políticas e iniciativas em espaços públicos. Ao contrário, estruturas administrativas descentralizadas devem ser usadas para potencializar e ampliar o alcance da participação dos beneficiários dos espaços na tomada de decisão.
Na cidade do Recife, o Programa Mais Vida nos Morros atua desde 2016 na recuperação de espaços públicos em áreas de baixa renda por meio de uma série de melhorias que incluem pintura de muros e paredes, intervenções lúdicas nas praças, mensagens de educação ambiental e locais para descarte correto de lixo. O processo envolve conversas e oficinas com os moradores e a execução por meio de mutirões. Mecanismos como esses ajudam a desenvolver uma cultura de participação e a fortalecer a criação de lideranças e redes de ação local.
Fortalecimento de organizações de base local
O sucesso da gestão participativa passa também pelo fortalecimento das organizações locais, sejam elas associações de moradores, de pequenos comerciantes ou outras. A representatividade e a capacidade de auto organização desses grupos incide diretamente na sustentabilidade das iniciativas no espaço público. Por essa razão, sua estruturação, capacitação e fortalecimento devem ser foco de políticas públicas.
O estímulo à participação ativa e de longo prazo permite o amadurecimento das discussões entre seus próprios membros, ajudando-os a superar diferenças internas e a encontrar formas de organização adaptadas a cada realidade. Quanto mais estruturadas e capacitadas as organizações locais, mais proveitosos serão os processos de participação, já que permitirão discussões mais focadas e aprofundadas que resultem em ganhos coletivos.
Financiamento
Assegurar fontes diversificadas e contínuas de recursos
O reconhecimento da importância dos espaços públicos na vitalidade urbana e na qualidade de vida da população passa também por garantir sua sustentabilidade financeira. Somente com recursos direcionados de forma contínua os espaços públicos podem funcionar como engrenagem de um círculo virtuoso de desenvolvimento local que inclui a atração de investimentos, a redução de despesas públicas – como as de saúde – e culmina com a melhora da qualidade de vida urbana.
Num contexto de estagnação econômica aprofundado pela pandemia do novo Coronavírus e dos desafios fiscais estruturais enfrentados pelos municípios brasileiros, faz-se necessário explorar alternativas de financiamento. Além de avaliar se a priorização do orçamento municipal corrente considera os espaços públicos e identificar oportunidades de realocação de recursos, novas fontes de receita podem ser estudadas, como os instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Cidade, mecanismos econômicos de desestímulo ao uso do automóvel e as parcerias intersetoriais.
Instrumentos do Estatuto da Cidade
O Estatuto da Cidade (Lei 10.1257/2001) regulamentou instrumentos de recuperação da valorização fundiária que visam distribuir os benefícios do processo de urbanização atendendo o interesse público. Estes instrumentos permitem aos municípios recuperar uma parcela do incremento do valor da terra quando esta é resultante de investimentos públicos em infraestrutura urbana ou de ações administrativas como mudanças nas regulamentações de uso do solo. Exemplos são o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, a Contribuição de Melhoria ou a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). Em São Paulo, o valor arrecadado com a OODC é direcionado ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), que financia obras de melhoramento urbano em toda a cidade, como a instalação de equipamentos, espaços públicos e a construção de habitação de interesse social.
Mecanismos de desestímulo ao uso do automóvel
Outros mecanismos que vêm aos poucos ganhando popularidade são os que visam compensar as externalidades negativas do uso do automóvel e subsidiar modos de deslocamento mais sustentáveis como o transporte coletivo, a bicicleta e a caminhada. Exemplos são as taxas cobradas aos serviços de transporte por aplicativo, aplicadas em cidades como Washington DC, São Paulo e Cidade do México, ou os sistemas de estacionamento rotativo em via pública. Em Fortaleza, desde 2018 toda a arrecadação do estacionamento rotativo é direcionada para políticas cicloviárias em ações como a implantação de ciclovias ou a ampliação do sistema de bicicletas compartilhadas. Na Cidade do México, o sistema de estacionamento rotativo ecoParq reverte 30% da receita arrecadada para a qualificação dos espaços públicos na região de abrangência. Os recursos são utilizados em intervenções como alargamento de calçadas, paisagismo e manutenção viária.
Parcerias intersetoriais
As parcerias intersetoriais entre governos, empresas e sociedade civil também podem contribuir para o custeio e conservação de espaços públicos. Embora não corrijam falhas inerentes à administração pública, elas permitem complementar sua atuação por meio da coordenação de esforços, recursos ou competências em torno de objetivos comuns. Diversos modelos de parcerias precisam ser explorados para atender diferentes demandas, atores envolvidos e tipos de espaços públicos. O estudo do ITDP Brasil apresenta alguns exemplos em diferentes contextos: os programas de parklets e programas de adoção de áreas públicas em cidades brasileiras, os distritos comerciais ou BIDs (do inglês Business Improvement Districts) norte-americanos, a recuperação participativa de praças com articulação entre sociedade civil e empresas privadas em cidades chilenas e o programa Parcerias Locais em Bairros e Zonas de Intervenção Prioritárias (BIP/ZIP), em Lisboa.
Atuação em escalas territoriais distintas
A análise dos distintos exemplos de governança e gestão de espaços públicos deixa clara a importância da atuação em duas escalas territoriais distintas para assegurar a gestão adequada dos espaços públicos. Se, por um lado, parece ser fundamental a existência de uma estrutura centralizada dedicada aos espaços públicos na administração municipal, atuando no planejamento de rede e na coordenação de iniciativas que incidem sobre esses espaços, por outro, é na escala da rua que as ações se materializam e uma pluralidade de atores interagem. A articulação e retroalimentação permanente entre essas duas escalas é o que torna a gestão dos espaços públicos sustentável e flexível o suficiente para responder aos processos de transformação e reinvenção constantes que caracterizam as dinâmicas urbanas.
O reconhecimento da importância dessa gestão em nível local, por sua vez, abre espaço para a discussão sobre as responsabilidades a serem assumidas ou compartilhadas por cada um dos atores que incidem sobre os espaços públicos, seja a população, sociedade civil organizada, empresas ou o poder público. Traz, ainda, o desafio de preservar o interesse público com arranjos de cooperação variados, que podem ter graus de colaboração e equilíbrios de poder distintos. Independentemente do formato, a complexidade que envolve essas relações requer que interesses, estratégias e capacidades dos atores envolvidos sejam amplamente discutidos e pactuados de forma transparente, e que convirjam na oferta de espaços públicos qualificados à população.