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Covid-19 e a política urbana: a densidade não é a vilã

Um único lar de idosos no Brooklyn (Cobble Hill Health Center), em Nova Iorque, registrou aproximadamente três vezes mais mortes por Covid-19 que a cidade de São Francisco, cinco vezes mais que Cingapura e nove vezes mais que toda Taiwan. A dramática situação vivida no estado levou o governador Andrew Cuomo a sentenciar a densidade populacional da cidade como destrutiva, e clamar por um plano imediato para sua redução.

Se a propagação da Covid-19 fosse facilmente explicada pela relação entre população e densidade, as partes ocidentais de Manhattan, Queens e Brooklyn deveriam ter registrado a maioria dos casos, mas não é o que ocorre. Elas estão entre os menores. Dados preliminares divulgados pelo estado de Nova Iorque em 9 de abril (NYC Health Department) revelam que 34% das mortes na cidade recaiu sobre os hispânicos (que representam 29% da população) e 28% entre os afro-descentes (22% da população), em comparação com 27% das mortes entre os brancos (32% da população) e 7% entre os residentes asiáticos (14% da população).

O distrito do Bronx, com densidade populacional mais baixa que o Brooklyn, metade da densidade de Manhattan e onde vive 17% da população, registrou 20% das mortes e foi mais afetado do que qualquer outro distrito da cidade.

A Covid-19 não tem impacto democrático no território. Em outras palavras, é possível perceber uma hierarquia espacial que expõe uma desigualdade pré-existente nas cidades. Ou seja, a propagação do vírus não afeta a todos da mesma maneira, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Europa e, como começamos a ver, no Brasil.

A densidade não é suficiente para explicar a maior ou menor disseminação do vírus nas cidades. Grandes aglomerações urbanas, como Taipei, Tóquio, Seul, Hong Kong ou Cingapura, estão registrando menos casos, proporcionalmente, do que cidades com baixa densidade na Europa ou nos Estados Unidos. É certamente um fator importante, especialmente para as realidades do chamado Sul Global, em particular as periferias ou favelas, onde o coeficiente de densidade é geralmente muito alto. Mas nesses locais é fundamental lembrar que existem inúmeras condições de vulnerabilidade prévias a Covid-19.

Se, por um lado, é cedo para darmos respostas concretas sobre como viveremos no pós Covid-19, por outro já é possível, cientificamente, levantar questionamentos e testar hipóteses para a agenda de políticas urbanas. Comparar, por exemplo, as medidas contra a rápida propagação vírus na cidade de Nova Iorque com as respostas dadas nas cidades asiáticas mencionadas traz mais lições no âmbito da gestão de eventos extremos do que simplesmente atribuir à densidade, como fez o governador Cuomo. Reações lentas, má gestão e políticas urbanas que produzem desigualdades e injustiças ambientais oferecem pistas importantes para refletir sobre o impacto da pandemia nos diferentes grupos da sociedade, tanto em termos de contaminação, quanto óbitos.

Foto: Gor Davtyan/Unsplash

Um alto número de pessoas vivendo juntas no mesmo espaço residencial é também um catalisador para a propagação do vírus, mas é uma situação que revela problemas anteriores, como a falta de moradia digna e o acesso deficiente ao abastecimento de água e à rede saneamento, entre tantas ausências na demanda por direitos na cidade. Culpar a densidade, sem colocar essas questões na origem do debate, pode criar uma cortina de fumaça para problemas complexos e históricos, ao invés de resolver questões fundamentais de justiça social nas cidades.

Se há uma uma revisão necessária a ser feita na maneira de planejar as cidades é garantir que moradia, e acesso à emprego e serviços não sejam planejados de modo dissociado O planejamento urbano deve produzir cidades que sejam resilientes aos eventos extremos e disruptivos, como os climáticos e, como vemos agora, sanitários. É preciso promover uma maior ocupação de moradias das áreas centrais, onde há concentração de vazios urbanos, mas também infraestrutura consolidada. É preciso também assegurar uma melhor distribuição de serviços, equipamentos e infraestrutura no território, fortalecendo as centralidades onde as pessoas habitam, e garantindo que estejam conectadas por um sistema de mobilidade urbana eficiente e inclusivo.

O reconhecimento da importância das cidades compactas, com adensamento no entorno do transporte público de alta capacidade, é batalha de décadas contra cidades produzidas para servir ao automóvel e ao espraiamento urbano, perpetuando as desigualdades sócio-espaciais no acesso à cidade. Abandonar essa agenda é um erro. Trata-se, ao contrário, de avançá-la contra a sanha contumaz da especulação imobiliária, sempre atenta aos chamados da expansão, independentemente de realizar empreendimentos em áreas distantes e desprovidas de serviços e equipamentos dignos.

Pedro Henrique Campello Torres, Visiting Scholar na Bren School of Environmental Science & Management, University of California Santa Barbara (UCSB). Pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEE) Universidade de São Paulo (USP). Clarisse Linke, Mestre em Políticas Sociais, ONGs e Desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science (LSE). É Diretora Executiva do ITDP Brasil.

Este artigo foi originalmente publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil.

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