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Como a configuração das cidades reflete o racismo e atrapalha a mobilidade

Maioria em regiões distantes dos centros, negros têm menor acesso a oportunidades e serviços. Investimentos públicos não corrigem cenário, que perpetua desigualdade

Pretos e pardos formam mais de 70% da população de Belém, capital do Pará. Os bairros com menor percentual de negros entre seus habitantes são Reduto, Nazaré e Batista Campos. A menos de 5km do Centro, eles apresentavam renda média mais de 3 vezes maior do que o verificado no restante da cidade em 2010. A situação exemplifica como a configuração urbana das cidades brasileiras reflete e perpetua o chamado racismo estrutural, que tem os problemas de mobilidade entre seus efeitos colaterais.

A concentração de negros em regiões periféricas no Brasil remete à abolição da escravatura, afirma a arquiteta e urbanista Carolina Duarte. Ela lembra que os alforriados não receberam nenhum suporte relacionado à moradia neste momento e foram levados a se estabelecer em áreas distantes das zonas centrais e com pouca infraestrutura. Este movimento moldou cidades em que pretos e pardos estão fisicamente afastados dos espaços com maior oferta de serviços básicos, como saúde, educação e transporte. 

Ao não reconhecer esta distorção e manter o discurso de um tratamento igual para regiões com diferentes níveis de desenvolvimento, o Estado reforça este descompasso, visto de forma crítica por ativistas negras como Anna Benites, professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás. “É uma violência dizer onde uma pessoa pode morar e, por consequência, que tipo de acesso à cidade ela terá”, afirma ela.

Com apenas 10% da frota de ônibus circulando pela cidade, a estação Central do Brasil apresenta fluxo intenso de passageiros | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Racismo na prática

A região metropolitana do Rio ilustra de forma clara o cenário descrito. Todos os dias, 2 milhões de pessoas se deslocam de municípios vizinhos em direção à capital fluminense para trabalhar e desenvolver outras atividades, de acordo com a edição 2020 do Mapa da Desigualdade. Essa multidão enfrenta o maior tempo de viagem casa-trabalho do país, segundo levantamento do site Moovit. Em média, cada passageiro leva 67 minutos para percorrer 13km, em veículos lotados e com algumas das tarifas mais altas do país. 

Sede dos últimos jogos olímpicos, o Rio não aproveitou a oportunidade para melhorar sua mobilidade, na opinião de Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense. As autoridades investiram R$ 1,2 bilhão na revitalização de parte das 104 estações de trem que atendem 12 municípios e R$ 10 bilhões na criação de uma nova linha de metrô com apenas 6 paradas entre Ipanema e Barra, região com população branca superior a 80%. 

Para o geógrafo, a priorização de um modal que não atende ao principal fluxo de transporte da cidade é um reflexo da forma preconceituosa como o Estado enxerga a questão da mobilidade. “O racismo estrutural que gera o investimento de 10 bilhões em Ipanema é o mesmo que decide não investir em Belford Roxo”, resume ele.

A situação não é exclusividade do Rio. A arquiteta e urbanista Kelly Fernandes enxerga dinâmica parecida em investimentos recentes realizados na capital paulistana. A 10km do Centro e com 85% de população branca, o bairro de Pinheiros ganhou 3 novas estações de metrô nos últimos 10 anos. Já o bairro de Guaianazes está a 30km do Centro, tem 47% de população branca e até hoje não conta com estação de metrô. 

Para Kelly, a ausência de políticas que corrijam estas desigualdades reforça a subordinação entre os territórios e, em última análise, prejudica os pretos e pardos que vivem nos espaços menos privilegiados. “Neste sentido, a briga por orçamento também é uma briga por reparação histórica e justiça social”, defende ela.

Efeitos colaterais

Movimentação nos terminais de embarque e desembarque de barcos em Belém | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Gastos maiores com deslocamento, menos tempo livre e menor acesso a bicicletas e outras alternativas de mobilidade no dia a dia são efeitos colaterais da vida na periferia. Além disso, ela também pode dificultar o acesso a melhores oportunidades de trabalho. 

Na opinião de Anna, a ausência de profissionais mais qualificados na vizinhança é um dos fatores que reduz o leque de referências de pretos e pardos e prende este segmento da população em um ciclo vicioso relacionado à pobreza, em uma situação que se repete pelo país. Em Curitiba, bairros como Batel, Hugo Lange e Jardim Social estão a cerca de 5km do centro, apresentam os menores percentuais de população negra do município e abrigam moradores com renda média mensal entre as 5 maiores da cidade.

No limite, a identificação de territórios como espaços preferencialmente não-brancos gera preconceito e tentativas de segregação. Anna lembra a situação do Vale dos Sonhos e outros conjuntos populares em Goiânia, que chegam a registrar percentuais de moradores negros superiores a 75% e se contrapõem a Aldeia do Vale e outros condomínios de luxo, com boa infraestrutura e menor presença de pretos e pardos. 

No Rio, Henrique traz o exemplo da linha 474. Ela liga o Jacaré, bairro com mais de 50% de pretos e pardos entre seus habitantes, a Copacabana, onde os negros não somam 20%. O trajeto do ônibus é alvo frequente de reclamações por parte dos moradores da segunda localidade, que o associam a ocorrência de arrastões e outros distúrbios na orla.

Imobilidade social

Kelly entende que estas interdições na circulação resultam na imobilidade social da população negra. “É uma forma de discriminação indireta, com barreiras que impedem que as pessoas cheguem a novos lugares sociais, econômicos e políticos”, diz ela.

O aumento da oferta e a melhora na qualidade dos serviços de transporte público são iniciativas que podem reverter os problemas de mobilidade gerados pelo racismo estrutural em nossas cidades. Os especialistas também defendem a integração entre diferentes modais como uma medida que pode ajudar a transformar o cenário atual. 

Do ponto de vista urbanístico, Henrique vê a melhor distribuição de oportunidades como fator decisivo para este processo, assim como a criação de novos espaços para moradia nas zonas centrais. A medida é apoiada por Carolina, que defende desapropriações nestas regiões com base na função social da propriedade. 

“São espaços com infraestrutura instalada, o que faz toda diferença. Violência e outros problemas que podem surgir podem ser contornados com outras políticas”, diz ela.

Por Saulo Pereira Guimarães

Confira as entrevistas completas da reportagem:

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