Ciência não pode ser coisa só de homem ou só de gente branca. Quem defende a ideia é Anna Canavarro Benites, professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás.
A forma como a mobilidade dificulta e molda o acesso dos negros à academia, a maneira como a universidade recebe este público e o impacto destas dinâmicas na vidas de pretos e pardos foram alguns dos temas abordados por Anna na entrevista para a série A Cor da Mobilidade. A professora também falou do lugar do negro nas grandes cidades brasileiras e dos apagamentos físicos e simbólicos aos quais este segmento é submetido. “A ausência destes dados raciais de mobilidade reflete metrópoles que não são para todos”, afirmou a acadêmica.
Qual é sua formação e como ela se relaciona com a questão do racismo?
Sou uma das fundadoras do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão LPEQI do Instituto de Química da Universidade de Goiás, criado em 2006. Temos mais de 100 integrantes nos LPEQI hoje e uma de nossas principais preocupações é com a descolonização dos currículos. Queremos uma ciência que seja contra hegemônica. Ciência não pode ser coisa só de homem ou só de gente branca.
Como estes princípios se relacionam com a questão da mobilidade?
Os corpos negros dentro da academia têm uma mobilidade restrita e tentamos lutar contra isso. Negros/as e pobres geralmente ocupam lugares subalternos na nossa sociedade racista e colonizante que têm menos tempo para estudar e é mais difícil integrá-lxs a grupos de pesquisa. Por outro lado, esta mesma população tem sido objeto de estudo da academia. Para mudar este quadro, precisamos alcançar as escolas públicas, que são mais claras no centro e mais escuras na periferia. Levar uma investigação de cunho social a elas ainda é um desafio. O recorte racial é obstáculo ao projeto de nação seguido por outros marcadores interseccionais. A universidade precisa conversar com os anseios da sociedade e a falta de mobilidade é uma interdição a esse diálogo. A mobilidade é fator que impede o acesso, limita a circulação social e faz com que percamos na nossa locomoção tempo que poderia ser gasto em estudo. Em muitos casos, os alunos trocam a possibilidade de estudar em universidades públicas distantes de suas casas pela opção de frequentar uma instituição particular só pela maior flexibilidade que esta alternativa oferece. Em resumo, o racismo tem impacto em nossas escolhas e o corpo negro é limitado por ele.
Essa dinâmica é um reflexo da relação entre mobilidade e racismo estrutural?
Sim. A mobilidade limitada é um dos fatores que influencia na escolha dos cursos. Há outros. Muitos estudantes de escolas públicas ainda pensam que a universidade pública é paga, por exemplo. Nos cursos de ciência e tecnologia, essenciais no planejamento do futuro, há menos negros/as do que nas carreiras ligadas às ciências humanas. Minha impressão é de que 30% dos pretos e pardos optam pela área de ciências tecnológicas, enquanto os 70% restantes escolhem formações vinculadas à parte de saúde e cuidados. Acredito que esta diferença e especialmente este vínculo do negro/a com o lugar do cuidado sejam reflexos diretos do racismo estrutural. Além disso, parece ser mais fácil conseguir trabalho com formação em áreas como educação, enfermagem e serviço social uma vez que o crescimento populacional é exponencial. Porém, isso tem uma consequência na distribuição da renda, já que estes são setores que pagam menos. Curiosamente, estes cursos não sofrem com casos de fraude na reserva de vagas – cotas. Ainda há as pessoas que dizem “estudar não é para mim” e outras coisas do tipo. Isso acontece porque a gente não tem exemplo, representatividade. Na periferia, muitas vezes as pessoas não conhecem ninguém na família ou na vizinhança que trabalhe como médico ou advogado. Os editais públicos, por sua vez, como Enem ou similares têm uma linguagem própria, que dificulta o acesso também. Às vezes, não se tem ninguém próximo capaz de entender o que está sendo dito ali em linguagem tão específica. Tudo isso limita nosso acesso às discussões.
Como a ausência de negros nestas áreas impacta a questão do planejamento?
Não só o planejamento, como nos investimentos e na distribuição de bens e serviços também são impactados. Você vê isso por exemplo na questão do acesso à água. Durante a pandemia, ficou escurecido que este acesso é limitado nos territórios majoritariamente negros e isso não aconteça por acaso. Um local com um planejamento não adequado ou desordenado reflete o entendimento daquela região como uma área onde vivem pessoas que não vão ultrapassar as fronteiras estabelecidas. E por isso podem conviver com ausência que é produto direto do racismo.
Que outras evidências do racismo estrutural você vê na academia e no mercado?
Enxergo um efeito disso nas bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado, por exemplo. Os/as negros/as são maioria de bolsistas na iniciação, científica que é voltada para alunos de graduação. Porém, são minoria nas bolsas de doutorado. Nas 500 maiores empresas do Brasil, há muitos pretos e pardos entre os estagiários, que trabalham muito e ganham menos do que os funcionários efetivados, e pouquíssimos homens e mulheres negros/as no topo da carreira. É uma questão que vai para além do âmbito da universidade e do mercado de trabalho. O racismo estrutural é uma questão histórica, política, ideológica e sobretudo simbólica.
Em que outras áreas é possível ver desdobramentos da desigualdade?
Uma pesquisa mostrou que o assassinato de mulheres negras cresceu logo após ter um momento de inflexão a partir de 2011, quando houve a criação da Lei Maria da Penha. Parece que a lei funciona, embora muito pouco, para mulheres brancas. Temos também todo um histórico de segregação e esquecimento de territórios historicamente negros, como o bairro da Liberdade em São Paulo. E a melhor distribuição de recursos nas cidades é sempre barrada pelo racismo, que se dá tanto pela interdição de espaços quanto pela produção de ausências.
Como se dá esta produção de ausência?
Quando negros/as não têm condições de mobilidade social, de interlocução com outros setores da sociedade e veem sua história e tradições religiosas serem apagadas, esta ausência está sendo produzida. No Rio, há menos pretos e pardos no Leblon à noite do que durante o dia, já que aquele local só está aberto a nós como um espaço de trabalho e não de lazer ou moradia. Em certas partes de Goiânia, você não encontra negros/as nem de dia, já que aqui há uma interdição de corpos mais frenética. É uma cidade marcada pelo agronegócio. Em Goiás, cidades históricas construídas pela escravidão tentam apagar este passado. Em Ouro Preto, ninguém fala de Chico Rei, que chegou a ser dono da maior mina de ouro da cidade, porque um exemplo de sucesso como esse é potência e pode derrubar mitos estabelecidos. Além disso, a mitologia africana estabelece uma relação menos exploratória e de mais respeito com a terra e seus recursos.
De que forma você enxerga a presença deste racismo estrutural em Goiânia?
Goiânia é uma cidade com quase 50% de população autodeclarada negra, segundo o IBGE. Ao contrário do que pode parecer, a congada – e não o sertanejo – é a principal manifestação cultural do Estado. É uma festa em que o povo negro mostra sua religiosidade, de maneira sincrética e que chega a durar uma semana em determinadas partes da cidade. Os homenageados são Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, ambos negrxs. Ao mesmo tempo, há aqui espaços silenciados e segregados, onde você não vê negros/as. Os chamados conjuntos populares não chegam a ser favelas, mas são construídos longe do centro pelo poder público e não contam com uma boa oferta de transporte. Eles representam o inverso dos condomínios residenciais de luxo, a la Beverly Hills, que também existem. Há um condomínio chamado Aldeia do Vale, que é bastante conhecido e fica de frente para um conjunto batizado de Vale dos Sonhos, numa situação que eu diria eufêmica diante de ser vizinho/a da riqueza. Como em qualquer lugar, quem mora longe tem mais dificuldade para conseguir emprego. Goiânia é uma cidade muito mascarada. Tem um cotidiano negro vivo e pulsante em suas frestas.
Como este cenário que você descreve colabora para perpetuação da pobreza?
As coisas se organizam de forma que os problemas nunca são atribuídos ao Estado. É um crime perfeito. Estas práticas eugenistas precisam ser denunciadas. É uma violência dizer onde uma pessoa pode morar e, por consequência, que tipo de acesso à cidade ela terá. Morei em Duque de Caxias (RJ), fiz faculdade na Ilha do Fundão e sei como é isso. Tinha um ônibus que me deixava perto de casa e outro que fazia um desvio quase chegando. Às vezes, cansada, eu não via, pegava o ônibus errado à noite e sofria. Quem mora melhor não passa por isso. Pode até dormir mais.
Essas limitações atuam como fatores para ausência do negro na sociedade?
Sim, porque esta ausência não é uma ausência qualquer, mas um fenômeno ativamente produzido, sofisticado. A própria história dos fluxos migratórios no Brasil não é contada a partir de um ponto de vista racial. Não falar de algo é dizer que aquilo não é importante ou não existiu. Por isso, há uma luta muito grande nas diferentes representações do movimento negro para que se produza dados sobre raça. Estamos nas universidades, mas não conseguimos nos manter. Não ter dados sobre isso não é por acaso. Nossa contribuição está sendo apagada. Um/a negro/a é assassinado num bairro onde existe tráfico e seu assassinato é atribuído ao lugar e não a sua pertença. Muitas pessoas sequer se reconheciam como negras até o último censo. Foi preciso muito esforço de letramento racial e acredito que teremos dados ainda mais expressivos neste sentido num próximo censo. A ausência destes dados raciais de mobilidade reflete metrópoles que não são para todos.
Por último, que soluções podem ajudar a mudar o cenário atual?
Os projetos de libertação do povo negro são sempre coletivos e tem alguns pilares. A educação é um deles. Precisamos ter consciência de que podemos estar em qualquer lugar, desde que acessemos condições para tal. Também devemos compreender que o estado não pode decidir quem é sujeito de direitos. Outra questão é a qualidade de vida. Apesar da maior incidência entre negrxs, doenças como diabetes e pressão alta não são inatas entre nós, como ocorre com a anemia falciforme. A ocorrência delas está diretamente relacionada a nossa qualidade de vida, jornadas extensas de trabalho sem prática de atividade física e dieta empobrecida. É um impacto direto do racismo. Não dá também para discutir classe, ou minorias sem falar de raça, já que os negrxs são sempre mais afetados por qualquer tipo de desigualdade. E precisamos ter mais acesso à voz, a posições de poder. Não há outro caminho que não seja o combate coletivo à segregação e isso se dará por educação, formal ou não. A escola tem de ser um espaço de conscientização sobre ausências. Na pandemia, estamos vendo tantos exemplos de reconstruções do acesso à cidade a partir do povo negro. Em resumo, acho que precisamos pensar menos na nossa condição enquanto indivíduos e mais em que papel podemos desempenhar na sociedade a partir dela. Somos o povo que resistiu à escravidão. Que curou feridas da colonização com magia.