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“A concepção do transporte coletivo no Brasil está conectada aos navios negreiros” diz Paique Duques Santarém

O racismo foi um vetor determinante na construção dos sistemas de mobilidade do Brasil nos últimos 100 anos. A tese é de Paique Duques Santarém, doutorando em arquitetura e urbanismo pela UnB e membro do Movimento Passe Livre de Brasília. Em entrevista para a série A Cor da Mobilidade, ele apresenta as principais ideias com que trabalha no momento e que interpretam o papel do preconceito na consolidação do transporte público no país.

“Os meios de transporte no Brasil têm características únicas e se assemelham muito ao transporte de mercadorias”, afirmou o antropólogo. A predominância de brancos na gestão e planejamento da mobilidade e a gentrificação de regiões regularizadas e ocupadas majoritariamente por pretos e pardos são alguns dos tópicos abordados por ele na conversa. Além disso, Paique trata do racismo presente nos deslocamentos, nos quais negros enfrentam mais dinâmicas de restrição e nunca têm uma experiência igual a dos brancos – ainda que em condições idênticas.

Por fim, o antropólogo falou sobre tarifa zero, novas lógicas de financiamento e outros caminhos para uma mobilidade menos baseada no preconceito. Ele defende que um sistema de transporte de qualidade é o primeiro passo para desconstruir a discriminação. “Circular, para a população negra, precisa ser uma experiência de prazer e não de medo. Se trabalharmos para isso, os mecanismos de racismo envolvidos na mobilidade são enfrentados e podem cair”, diz Paique.

Qual é sua formação e que tipo de trabalho você desenvolve hoje?

Sou bacharel e mestre em antropologia social pela UnB. Agora, estou fazendo doutorado em arquitetura e urbanismo nesta mesma universidade. Sou militante do Movimento Negro desde a adolescência, também atuo no Movimento Passe Livre (MPL) há dezesseis anos e sempre desenvolvi pesquisas ligadas a estes assuntos. Quando estávamos ainda no começo do MPL, em 2006, recebemos esta provocação de ativistas do Movimento Negro do Distrito Federal sobre a relação entre o transporte e a população negra. Desde esta época, eu já estudava a questão do transporte coletivo. No mestrado, abordei a questão dos conflitos sociais no Distrito Federal e, no doutorado, estou desenvolvendo um trabalho sobre a mobilidade racista no Brasil. A ideia é mostrar como o racismo foi um vetor determinante e estrutural da montagem da mobilidade urbana em nosso país desde o século XIX para cá, perpassando a construção dos bondes e ferrovias até a transição para o transporte motorizado que temos hoje.

Você poderia explicar melhor este conceito de mobilidade racista?

No meu trabalho, este conceito se apoia em três entendimentos básicos. O primeiro é que nosso sistema de transporte foi montado com ferramentas próprias do racismo, assim como nossas cidades e isso tanto se refletiu quanto se relacionou com a segregação socioespacial. O segundo entendimento é a hipótese de que a própria concepção do transporte coletivo no Brasil está conectada ao tráfico negreiro, que foi nossa primeira forma de transporte de massa. No texto, analiso mecanismos específicos que revelam esta continuidade. Por último, trabalho com a ideia de que se o transporte coletivo é uma instituição racista de uma sociedade racista, ele está relacionado com outras instituições do racismo e compõe o grande projeto racista que existe no país, assim como o racismo no mercado de trabalho, na saúde, na educação, na organização espacial e dentro do horizonte amplo de genocídio da população negra.

Por que você entende que o nosso sistema de transporte foi montado com base no racismo?

É normal imaginar que uma mesma viagem realizada por um negro ou por um branco seja uma experiência vivenciada de maneira igual – seja boa ou ruim. Mas, no caso brasileiro, ela sempre é diferente, independente do modal de transporte que estiver envolvido. Há diversos fatores para isso. Eles vão desde a baixa autoestima que faz com pretos e pardos se sintam indignos do espaço público e desmotiva seus deslocamentos, passando pela oferta diferenciada de linhas e infraestrutura em bairros de maioria negra até questões como o fato deste segmento ser alvo preferencial de abordagens policiais. A circulação em nossas cidades é marcada racialmente e mais difícil para negros em determinadas horas e espaços. Nossa situação no espaço envolve muitas dinâmicas de restrição.

Como essa situação foi construída historicamente?

É interessante pensar que os negros no Brasil nem sempre estiveram nas periferias e longe do sistema de transportes. No século XIX, pretos e pardos estavam concentrados nas áreas centrais de nossas cidades e presentes também nos subúrbios e regiões mais distantes. A cidade era muito negra. Na minha leitura, o sistema de transportes foi construído para criar espaços de circulação branca, criar muros para que negros não acessassem o centro e periferizar ainda mais aqueles que já estavam fora dele. Vejo ainda uma outra questão. Toda vez que os negros conseguiram legalizar os espaços que ocupavam e incluí-los no sistema de transportes, isso foi sucedido por um embranquecimento da população daquela área e a posterior expulsão da maior parte dos pretos e pardos dali. É uma dinâmica perversa, na medida que quanto mais linhas de ônibus e estações de trem e metrô um determinado local tem a sua disposição, maior valor imobiliário aquela área passa a acumular e, também, mais os mecanismos de restrição da circulação negra que já mencionei passam a operar ali. O resultado disso tudo é uma mobilidade eivada de diferenciação racial em quase todos os seus aspectos.

Como você relaciona os navios negreiros ao transporte que temos hoje no país?

Na minha tese estou trabalhando três aspectos que indicam que a tecnologia de mobilidade que dispomos hoje foi montada com base no transporte escravocrata. Um deles é o fato de que muitas das primeiras empresas de transporte coletivo e infraestrutura viária do país atuavam no tráfico e, com o fim deste, reverteram seus excedentes de capital para área de transporte e mobilidade. Foi o caso de muitos barões e outros grandes investidores que apostaram em estradas e serviços de bondes e trens. O excedente do tráfico negreiro financiou a circulação de mercadorias e pessoas em nossas cidades. Inicialmente, a mobilidade era um produto destinado aos ricos em locais como Rio, Salvador e São Luís. Os negros precisavam caminhar longas distâncias para se deslocar, já que não eram vistos pelo sistema como cidadãos ou consumidores – mas apenas como força de trabalho e mercadoria. Neste cenário, o nosso papel era ser quem constrói e quem é transportado. Segundo ponto: os meios de transporte no Brasil têm características que se assemelham muito ao transporte de mercadorias. Isso fica especialmente claro nos ônibus com motor dianteiro – que é pior para quem usa e dirige, mas mais barato para quem fabrica e compra – e sistema de amortecimento igual ao de caminhões. É a mesma base do transporte de mercadorias de longa distância. O terceiro aspecto é o econômico. O Índice de Passageiros por Quilômetro Rodado (IPK) e outros indicadores do setor baseiam-se numa lógica de que a produtividade é medida por quantos mais passageiros sejam transportados, como cargas. Isso resulta num sistema pensado para que haja o máximo de pessoas nos veículos, o que eu também vejo como algo inspirado no transporte de mercadorias. É uma tecnologia racista. Muitos navios negreiros afundaram por excesso de negros embarcados. Mas, ainda hoje, toda tecnologia do transporte é orientada pelas ideias deste período.

E como o racismo do sistema de transportes se manifesta na prática?

O vínculo do racismo com o sistema de transportes pode ser visto na reprodução da segregação territorial, por exemplo. Na dificuldade que ele impõe para que pretos e pardos acessem o sistema de saúde e o mercado de trabalho também, por conta da passagem e da gasolina caras, da má condição das estradas. Na própria administração do setor. Quem pensa a mobilidade no Brasil é um grupo com uma maioria de brancos enquanto gestores, técnicos, cientistas e políticos. Quem gere, decide, pensa, organiza e executa o sistema de transportes são brancos. Mesmo entre os trabalhadores, há mais brancos em funções de maior salário, atendendo áreas nobres. Aqui em Brasília, o transporte executivo de áreas centrais é climatizado, tem motor traseiro e é majoritariamente operado por brancos para atender uma maioria branca. O mesmo se vê em relação ao vale-transporte, benefício vinculado a quem trabalha com carteira assinada, fração da classe trabalhadora onde há mais brancos do que negros. No setor informal que não dispõe de vale-transporte, a maioria negra é gritante. Em muitas cidades, o ônibus que circula na madrugada, que pega os últimos a saírem e os primeiros a entrarem no trabalho, é chamado de ônibus negreiro. Este termo consta inclusive em processos movidos pelos motoristas, que queriam que as horas de viagem neste veículo já contassem como período de trabalho. Diz muito sobre a genealogia do nosso sistema de transportes.

Como essas dinâmicas que você descreve se dão em uma cidade como Brasília?

A primeira forma de transporte dos negros para Brasília foram os paus-de-arara da construção da cidade, que traziam trabalhadores migrantes e material de construção juntos. Os caminhões que traziam cimento e argila traziam gente também. Então, é uma cidade que foi construída já com esta dimensão violenta de transporte coletivo em sua origem. Uma cidade feita pelos negros para os brancos morarem. Depois dela pronta, os negros ficaram e o resultado foi um espaço urbano com vários núcleos espalhados e uma organização em que o Plano Piloto concentra serviços e as cidades-satélites têm uma infraestrutura mais precária. Por outro lado, estas regiões administrativas foram ficando mais brancas à medida que conquistaram mais infraestrutura. Apesar da população negra ser maioria no Distrito Federal, os territórios com mais negros têm menor oferta de mobilidade, infraestrutura e outros serviços que outros locais. Até hoje, boa parte das empresas que trouxeram os negros e os materiais de construção que deram origem à Brasília cuidam do transporte público da cidade.

Que soluções você vê para reverter o racismo no nosso sistema de mobilidade?

Antes de tudo, a forma de gestão e financiamento tem que mudar. Precisamos de veículos de mais qualidade e acabar com a passagem, implementando a tarifa zero. Quem usa o transporte coletivo e nele trabalha deve ter mais poder para determinar como o sistema funciona. O segundo ponto que eu julgo importante é a substituição da tecnologia atual por um modelo que não seja orientado pelo lucro, mas por direitos. É muito clara a diferença entre quem voa de avião e quem viaja de trem, metrô ou de ônibus. Por que o avião tem comissário de bordo e o ônibus não? No cenário atual, a empresa aérea ruim é justamente aquela que nos oferece uma viagem com menos conforto e mais parecido com os atuais deslocamentos no transporte coletivo. Viajar de ônibus, de trem, de metrô tem que se aproximar da melhor experiência do nosso dia. Hoje, a gente fica aliviado quando sai destes modais rumo aos espaços de exploração da cidade. O sistema de mobilidade hoje funciona como um disciplinador dos nossos corpos para o trabalho. Não dá. Defendo a tarifa zero também porque ela muda nossa relação com o transporte, aumenta a possibilidade de livre-circulação e possibilita a quebra de muros raciais da cidade. Circular, para a população negra, precisa ser uma experiência de prazer e não de medo. Se trabalharmos para isso, os mecanismos de racismo envolvidos na mobilidade são enfrentados e podem cair. Tem que ser gostoso andar de ônibus. A pessoa tem que sair do transporte mais feliz e não violentada como acontece hoje.

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