Entre as vítimas do trânsito, as crianças se destacam como um grupo particularmente vulnerável quando comparado com outras pessoas. Devido às suas características físicas e cognitivas, elas são mais suscetíveis a ferimentos, o que faz com que os sinistros de trânsito sejam uma das principais causas de morte de crianças e jovens entre 5 e 14 anos no Brasil. Num contexto em que grande parte dos estudantes se deslocam a pé até a escola, como é o caso da rede pública de educação na cidade do Rio de Janeiro, as ruas mais seguras não apenas proporcionam mais conforto e segurança na caminhada, mas também facilitam o acesso ao aprendizado.
Para abordar essas questões, é fundamental adotar uma visão sistêmica, que integre diversos fatores relacionados à segurança viária e acesso à escola. Dois pilares essenciais nesse contexto são a infraestrutura viária e a educação, frequentemente tratados de maneira isolada. Combinar estratégias que envolvam tanto melhorias na infraestrutura quanto programas de educação para as pessoas que a utilizam potencializa o impacto das ações implementadas. Essa abordagem integrada, chamada de Sistemas Seguros, é vital para criar um ambiente mais seguro e equitativo, beneficiando todos e todas.
O Programa A Caminho da Escola 2.0
O Programa A Caminho da Escola 2.0, implementado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, tem se destacado no contexto brasileiro como uma boa prática de integração entre melhorias de infraestrutura viária e educação para o trânsito.
Fruto de uma parceria entre a Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro (CET-Rio) e a Secretaria Municipal de Educação (SME), o Programa existe desde 2008. Ações educativas são realizadas em escolas públicas municipais com o objetivo de debater questões relacionadas à segurança no trânsito e promover intervenções de moderação de tráfego no entorno das escolas. Nesse processo, os alunos e professores ajudam a identificar problemas no entorno da escola e propõem soluções ao corpo técnico da CET-Rio.
Em 2021, a iniciativa teve sua metodologia aperfeiçoada por uma parceria entre ITDP Brasil, FIA Foundation e CET-Rio, que resultou em uma intervenção piloto. O objetivo foi aprofundar essa integração entre teoria e prática, fazendo com que a visão de estudantes e professores fosse reconhecida pelas equipes responsáveis pelos projetos viários e a implantação de transformações viárias no entorno das escolas, priorizada. Desde então, intervenções de redesenho viário e moderação de tráfego já foram executadas no entorno de 57 unidades escolares da rede pública em todas as regiões da cidade e mais de 280 escolas receberam ações de conscientização e educação.
Em 2023, foi elaborado o estudo “Infraestrutura segura e inclusiva para melhorar o acesso das crianças à escola no Rio de Janeiro”, que visou aferir resultados das ações do Programa e fornecer insumos para o aprimoramento das suas atividades. Foram realizadas auditorias de segurança viária no entorno de 30 escolas e realizadas mais de 2000 entrevistas com estudantes, pessoas cuidadoras, professores e professoras em escolas que receberam o programa e em um grupo de controle (escolas que não passaram pelo Programa). O estudo foi proposto e financiado pelo Banco Mundial no escopo da operação de crédito para Política de Ajuste e Desenvolvimento Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro e conduzido pelas equipes da CET-Rio, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil) e do World Resources Institute (WRI Brasil).
Os resultados das entrevistas mostram que o Programa influencia positivamente o conhecimento de segurança viária de estudantes, professores e pessoas cuidadoras. As análises dos entornos escolares geraram subsídio para o desenvolvimento do Guia de Entornos Escolares Seguros, que contextualiza as principais dinâmicas escolares observadas in loco, traz diretrizes de projeto para áreas escolares seguras e acessíveis, além de orientações para o aprimoramento do Programa.
Desenho viário seguro é uma ferramenta de educação no trânsito
O Programa A Caminho da Escola 2.0 tem demonstrado resultados significativos entre estudantes, professores, professoras e pessoas cuidadoras.
Os dados revelam que os alunos que participaram de todas as etapas da implementação do Programa apresentam um aumento notável no conhecimento sobre soluções de segurança viária. Em comparação com grupos não expostos ao programa, 71% dos estudantes conhecem um maior número de soluções, em especial aquelas intervenções viárias utilizadas de forma mais recorrente, como a redução da curvatura das esquinas e o estreitamento da faixa de circulação de veículos para redução de velocidade.
Os resultados sugerem que a iniciativa não apenas aumenta o conhecimento, mas também modifica a percepção dos alunos sobre o espaço viário. Ao serem questionados sobre qual modo de transporte priorizariam em um cenário de reforma das ruas próximas à escola, os estudantes do grupo de escolas atendidas pelo Programa demonstraram uma preferência clara por modos sustentáveis de deslocamento. Apenas 36% optaram por modos motorizados individuais, como carro e moto, em comparação a 53% do grupo de controle. Em contrapartida, 64% dos alunos participantes do Programa priorizaram modos sustentáveis, como bicicletas e caminhadas, em comparação a 47% do grupo de controle.
Esses resultados evidenciam que o Programa não apenas eleva o conhecimento sobre soluções de segurança viária, mas também influencia positivamente a atitude dos estudantes em relação ao uso de transportes mais sustentáveis. Ao priorizar a redistribuição do espaço viário, as intervenções realizadas contribuem para uma cultura de maior segurança nas ruas e incentivam hábitos de deslocamento mais sustentáveis.
Desenho viário seguro é uma ferramenta na redução das desigualdades
Em contextos como o das escolas da rede pública do Rio de Janeiro, programas como o A Caminho da Escola 2.0 são fundamentais para garantir um ambiente mais seguro para os deslocamentos de crianças e suas cuidadoras, com impacto positivo não só na qualidade de vida, mas também na inclusão social.
O desenho viário seguro é uma estratégia essencial na redução das desigualdades sociais, especialmente em áreas periféricas das cidades brasileiras. Os usuários “vulneráveis da via” – como pedestres, ciclistas e motociclistas – muitas vezes são grupos de pessoas que não têm acesso ao transporte público, seja por questões financeiras ou falta de cobertura da rede, e são levados a enfrentar um maior risco ao se deslocar nas cidades.
Os resultados do estudo revelam que 46,5% dos estudantes vão para a escola a pé, enquanto 20,1% utilizam transporte escolar e apenas 6,3% se valem do transporte público. A prevalência de deslocamentos a pé também é significativa entre as pessoas cuidadoras: 54% optam por esse modo, enquanto apenas 17% utilizam veículo próprio para levar ou buscar as crianças na escola
Analisando a realidade das pessoas cuidadoras, a pesquisa indica que a maioria (73%) é composta por mulheres, com uma alta presença de mulheres negras (48,2% pardas e 27% pretas). Os dados revelam ainda que as mulheres se deslocam a pé para a escola em maior número (63%) do que os homens (35%) e utilizam mais transporte público (12% contra 7%). Por outro lado, os homens utilizam mais carro ou moto própria (51%) em comparação com as mulheres (13%). Essa discrepância é particularmente notável entre os homens brancos, que são o único grupo que se desloca mais de carro do que a pé. Entre os estudantes, as meninas também se destacam ao caminhar mais frequentemente do que os meninos, com 50% contra 43%.
O que pode ser melhorado?
As intervenções físicas do A Caminho da Escola 2.0 são concebidas sob a perspectiva do urbanismo tático, cuja essência está na transformação rápida e de baixo custo do espaço urbano para que novas soluções possam ser testadas e posteriormente, melhoradas e consolidadas. Seu cerne está associado à possibilidade da intervenção sofrer ajustes e revisões caso seja necessário. No entanto, é importante que, à medida que as ações tenham sido bem-sucedidas e assimiladas pela população, sua consolidação em obras físicas mais robustas e com menor necessidade de manutenção seja efetivada.
Além disso, é importante que sejam contempladas intervenções urbanas de maior escala e complexidade, para que resultados mais robustos na redução do número de vítimas do trânsito sejam alcançados. As recomendações apresentadas no Guia de Entornos Escolares Seguros apontam uma série de elementos de projeto viário e medidas adicionais a contemplar para potencializar o impacto das intervenções. A ampliação do escopo das intervenções passa pelo envolvimento contínuo de outras secretarias municipais no Programa, complementando a atuação da engenharia de tráfego.
Ampliar o engajamento da comunidade, incluindo vizinhos e famílias, também é fundamental para que as intervenções em segurança no trânsito não apenas promovam mudanças práticas, mas também atuem como elementos de educação sobre a importância da segurança nas vias. A expansão do Programa A Caminho da Escola 2.0 é um passo fundamental para a melhoria na segurança no trânsito e na mobilidade no Rio de Janeiro e na formação de cidadãos e cidadãs conscientes sobre o seu papel nesse processo.