Qual é o papel de negros e negras nas discussões sobre o impacto ambiental da mobilidade? Ainda pouco abordado, o tema é o principal assunto da entrevista da jornalista Andreia Coutinho Louback para a série A Cor da Mobilidade. Andreia é mestre em relações étnico-raciais e trabalha no Instituto Alana como coordenadora de comunicação e mobilização no eixo de justiça climática do programa Prioridade Absoluta.
O papel central da mobilidade na aproximação de Andreia com a questão ambiental e conceitos como justiça climática são alguns dos tópicos abordados pela jornalista na conversa. Para ela, a experiência de pretos e pardos nas grandes cidades brasileiras é invisibilizada no debate sobre políticas ligadas ao meio ambiente. Por outro lado, Andreia vê o impacto das enchentes em favelas e outras comunidades majoritariamente negras como manifestações claras de que esta população se encontra hoje mais sujeita às transformações do planeta. “É um assunto que eles foram forçados a entender antes mesmo de surgir a teoria”, diz ela.
Para Andreia, ter mais negros no debate sobre formas mais limpas de mobilidade não torna apenas a discussão mais plural. Ela vê o aumento da representatividade como um caminho para que parcelas cada vez maiores da população possam fazer escolhas melhores para o meio ambiente. “Se a perspectiva racial não nortear o que chamamos de cidades inteligentes e sustentáveis, não iremos muito longe”, resume a jornalista.
Qual é sua formação e que tipo de trabalho você desenvolve hoje?
Sou formada em jornalismo e tenho mestrado em relações étnico-raciais pelo Cefet, com especialização em gênero, raça e comunicação. Depois do mestrado, trabalhei no Instituto Clima e Sociedade (iCS) como coordenadora de comunicação e, nesse percurso, me interessei pelas discussões sobre justiça climática, tema que sempre tratei com um olhar interseccional. Aos poucos, fui me aprofundando no assunto e, recentemente, comecei a trabalhar no Instituto Alana, na coordenação de comunicação e mobilização da área de justiça climática e socioambiental do programa Prioridade Absoluta.
O que está em discussão quando se fala em justiça climática?
Em geral, os direitos urbanos dos moradores. Um futuro climaticamente seguro precisa ter igualdade. Não prejudicar os mais vulneráveis às mudanças deve ser um princípio, assim como garantir a participação deles nos debates sobre os rumos do planeta. Nesse sentido, o objetivo da justiça climática é amplificar vozes e propor soluções. Quando se observa a situação da população negra, a gente percebe que nós não somos apenas vulneráveis, mas também invisibilizados. Aqui no Brasil, ainda não temos um conceito definido de justiça climática. Já no exterior, falar disso é discutir como salvaguardar as populações mais vulneráveis frente às mudanças do clima, como evitar mortes e trazer estas pessoas para o debate. Se a gente pensa nas enchentes, entende que este cenário já é uma realidade para muitos negros no Brasil. É um assunto que eles foram forçados a entender antes mesmo de surgir a teoria. Nós já temos uma vivência diferenciada dos impactos das mudanças do clima por parte de alguns grupos. Nas enchentes de abril de 2019 no Rio, vários corpos soterrados eram negros, por exemplo.
E como a sua vivência se relaciona com a questão da mobilidade?
Assim que comecei a trabalhar no iCS, a mobilidade urbana foi meu primeiro ponto de identificação com a agenda ambiental. Morei em São Gonçalo e estudei na PUC, na Gávea, na Zona Sul do Rio. Depender do transporte público para cruzar a cidade era uma experiência latente em mim, embora nunca a tivesse problematizado fortemente. Fiz também um intercâmbio durante a faculdade, em 2013, no qual pude vivenciar uma outra relação com transporte público e temas como a mobilidade ativa, depois de uma vida distante dos locais de estudo e de trabalho. Para mim, foi um processo que trouxe muitas contradições à tona. Depois de formada, já trabalhando, lembro de acompanhar uma vez um evento sobre mobilidade no Museu do Amanhã. As palestras foram até as 22h e, quando terminaram, eu peguei um trem para Campo Grande, enquanto os especialistas voltaram de carro para casa. Digo isso sem fazer nenhum juízo de valor e sim pela reflexão que a situação me provocou. Quem usava o transporte público não estava participando do debate. Enfim, eu tenho uma relação muito forte com essa questão de mobilidade porque sempre fui muito dependente do transporte público. Com o tempo, você passa a entender a cidade a partir de um olhar diferente. Por tudo isso, sou alguém que defende muito um transporte público de mais qualidade, com menos assédio e um serviço melhor.
Como o intercâmbio ajudou a moldar seu olhar neste sentido?
Passei 2 meses em Londres durante o intercâmbio. Lá, eu morava perto de onde estudava e lembro que uma das coisas que me chamou muita atenção foi o fato dos ônibus chegarem ao ponto no horário certo. Poder confiar neles nesse sentido me impactou bastante. Outro ponto que me impressionou muito foi a grande malha de metrô, com estações bem distribuídas. Eu me sentia segura, bem atendida e sabia que podia contar com o transporte no horário previsto. Não gosto de comparar o que vivi lá com o que existe aqui por se tratarem de realidades diferentes. Na França, vi um sistema parecido com o da Inglaterra, embora menos organizado.
E como você vê a relação entre racismo e mobilidade no Brasil?
Tenho muitas imagens e vivências sobre isso na minha memória. Quando você cruza mobilidade cotidiana, com segregação urbana e exclusão social, o resultado é o racismo nos deslocamentos. As aulas na PUC começavam às 7h. Para chegar lá no horário, eu precisava acordar às 4h e pegar o ônibus em São Gonçalo às 4h45 para estar em Botafogo por volta de 6h30 e chegar na PUC a tempo. Um dia, uma amiga falou “nossa, tive hoje uma manhã produtiva: fiz ioga, pedalei e corri antes de vir para aula”. Foi um choque perceber o abismo entre a realidade matinal dela e a minha. Na melhor das hipóteses, eu dormia no ônibus e só. Para mim, a relação entre racismo e mobilidade passa muito por aí. No ônibus e metrô lotados que somos forçados a pegar, na falta de opções de deslocamento mais sustentáveis, em quem ganha e quem não ganha um carro quando faz 18 anos e passa no vestibular. Na minha vivência de 30 anos como mulher negra que tinha apenas o transporte público como opção, passei a vida inteira com medo de ser assaltada nos meus deslocamentos, por exemplo. Tinha de me expor a risco para ir de casa até o ponto de ônibus em Alcântara. Meu único privilégio era o de poder ir sentada, já que fazia o trajeto da linha de ponta a ponta.
Como a questão ambiental se coloca na discussão sobre a mobilidade de negros no Brasil?
A mobilidade ainda tem pauta, narrativa e soluções pouco racializadas como um todo, inclusive neste aspecto. Como movimento ambiental, a nossa luta é por escolhas estratégicas que resultem na redução de emissões de gases causadores do efeito estufa. O transporte é a principal fonte disso em nossas cidades. Itens como os carros só beneficiam 20% da população, embora respondam por uma fatia bem maior em termos de poluição. Nesse sentido, penso que é preciso que haja representatividade negra na comunidade climática para que possamos pensar nossa mobilidade em termos de emissão, considerando nossas condições. Como a maioria de nós vive longe dos centros, não dá para se deslocar de patinete. É uma discussão que pessoas como a vereadora eleita Tainá de Paula já trazem hoje. Não dá para ser inocente. A comunidade climática tem responsabilidade em trazer pretos e pardos para o debate sobre o meio ambiente não só pela diversidade, mas para que nós também possamos fazer escolhas melhores para o planeta.
O debate sobre o chamado racismo ambiental está relacionado a isso?
Sim. O racismo ambiental mostra o quanto uma cidade é desigual e palco de contradições. Minha história é só mais uma. A cidade é mais hostil para uns do que para outros, em função de fatores como como cor, classe e gênero. Por outro lado, este é um debate que não permite soluções prontas. É preciso entender as diferentes dinâmicas do território e a realidade de cada um. O planejamento urbano do Rio é muito branco e não considera a realidade dos negros que transitam na cidade. É preciso não só um transporte sustentável. É preciso uma cidade sustentável. A linha de metrô da Barra é um exemplo revoltante nesse sentido. Ela representa o benefício de alguns em função do detrimento de muitos.
Por fim, que soluções você vê que podem mudar este cenário?
Sei que, em Fortaleza, a Simony César criou o Nina, um app que mapeava casos de assédio em transporte público. No caso do Rio, ia adorar ver soluções que mostrassem quantos direitos são violados e como podemos denunciar estas violações, sob uma ótica racial. Ia ser muito bom ver a vivência de quem precisa do transporte público pautar a elaboração das políticas públicas. Acredito que, com isso, nossos problemas teriam soluções mais rápidas. Do ponto de vista climático, considero interessante pensar em modos de deslocamento, em como reorganizar nossas cidades a partir de lógicas mais sustentáveis. Sonho com mais opções de transporte em nossas metrópoles que combinem mobilidade e sustentabilidade. Acho que estamos distantes disso, mas a possibilidade de combinações mais inteligentes entre diferentes modais seria um primeiro passo na direção de um transporte mais equitativo e menos hostil.
Por fim, que soluções você vê que podem mudar este cenário?
Para mim, as crianças ocupam este lugar. Sempre andei muito de ônibus e, quando mais nova, achava a experiência do deslocamento nestes veículos algo muito legal. Só fui adquirir memórias mais hostis em relação ao transporte público mais tarde, durante a juventude e vida adulta. Por isso, entendo que as crianças podem desempenhar um papel interessante na formulação de políticas de mobilidade. Elas não podem ter uma função secundária neste processo. A ideia de justiça ambiental também passa por isso. As crianças podem dar uma contribuição surpreendente neste sentido, por terem um outro olhar e uma outra vivência em relação à mobilidade. Essa noção já é algo comum fora do Brasil.