A mobilidade é uma janela por meio da qual enxergamos a cidade, seu desenvolvimento e seus principais problemas. A afirmação é do geógrafo Henrique Silveira, mestre em cultura e comunicação pela Uerj e coordenador executivo da Casa Fluminense.
Para o especialista, a priorização dos investimentos em áreas nobres gera uma infraestrutura de mobilidade que coloca em risco à população mais pobre e negra. Entre 2008 e 2018, pretos e pardos representaram 68% das vítimas dos 368 acidentes ferroviários registrados no estado do Rio.
“O racismo estrutural que gera o investimento de 10 bilhões em Ipanema é o mesmo que decide não investir em Belford Roxo”, afirma ele. “É a face mais brutal do racismo”, diz.
Em entrevista para série A Cor da Mobilidade, Henrique trata ainda de outros temas – como a relação entre violência e transportes no Rio e a importância da realização do censo em 2021 para elaboração de políticas públicas racializadas.
Qual é sua formação e em que área atua hoje?
Sou formado em geografia pela Uerj e tenho mestrado em cultura e comunicação pela mesma universidade, que obtive com um trabalho sobre os movimentos culturais na Baixada Fluminense e como eles propunham um outro olhar para esta região para além da questão da violência. Trabalho hoje como coordenador executivo na Casa Fluminense, que é uma organização que monitora a execução de políticas públicas na região metropolitana do Rio que levem à redução da desigualdade. Lá, atuo no acompanhamento de projetos e na representação político-institucional da Casa. Nossos 3 principais eixos de atuação são informação, mobilização e incidência política.
Como seu trabalho se relaciona com a questão da mobilidade?
A mobilidade é um elemento central para a maneira como enxergamos a cidade, seu desenvolvimento e as desigualdades que ele cria. Cerca de 2 milhões de pessoas saem de municípios da região metropolitana do Rio para a capital todos os dias para trabalhar e acessar serviços e outras oportunidades. Em muitos casos, são deslocamentos de mais de 1h, em transportes cheios, com tarifa cara e que geram perda de qualidade de vida para estes passageiros. Esse cenário revela uma metrópole muito desigual, com oportunidades concentradas num núcleo e periferias sem infraestrutura e vagas de trabalho. Esta situação impõe à população um deslocamento diário médio que hoje é o maior do Brasil e está entre os maiores do mundo. A descentralização das oportunidades para locais como a Baixada, a Zona Norte, Niterói e São Gonçalo e o aumento do número de habitações no Centro do Rio, que atualmente concentra os empregos, são formas de reverter este quadro. É preciso aproximar o planejamento de mobilidade, habitação e trabalho. Esta discussão passa também pela questão do sistema de transportes.
Qual é o papel do sistema de transportes em relação à mobilidade?
Quando se fala de grandes metrópoles, os modais de transporte de alta capacidade merecem atenção especial. No caso do Rio, trem e metrô. A região metropolitana tem uma das maiores malhas ferroviárias do país, que atinge 12 municípios, tem mais de 100 estações e atendia cerca de 600 mil usuários por dia no começo do ano. Atualmente, nossos trens levam menos gente que o metrô, que transportava 800 mil pessoas por dia antes da pandemia. Nos 2 modais, os principais gargalos são a má qualidade, a pouca integração e a situação ruim no entorno das estações, que muitas vezes são centros comerciais importantes. O caminho dos trens definiu muito o desenho urbano do Rio. Outra questão é o alto número de mortes. Em 2018, a região metropolitana do Rio teve 42% dos atropelamentos ferroviários do Brasil. Foram 91 casos e 82% das vítimas eram pessoas negras. Há muitas áreas sucateadas que expõem os usuários a vários riscos, inclusive o da morte. Na história recente do Rio, os investimentos em trens ficaram aquém do necessário. Enquanto a Supervia recebeu R$ 1,2 bilhão para revitalização de estações nos preparativos para os jogos olímpicos, investimos R$ 10 bilhões em uma linha de metrô com 6 estações entre Ipanema e Barra, região com população branca superior a 80%. É um metrô na beira da praia, que atende uma área nobre que não abriga o principal fluxo de transporte da cidade. A valorização de certas áreas por meio deste tipo de obra atende aos interesses do mercado imobiliário, mas limita o acesso da periferia a serviços públicos melhores. Quem olha para os trens percebe um histórico de não-priorização de um modal que tem 1 século de existência e um papel importante para o desenvolvimento da cidade.
Como se dá a relação entre mobilidade e racismo estrutural no Rio?
Um episódio trágico que ilustra bem isso e foi acompanhado de perto pela equipe da Casa foi a morte da Joana Bonifácio, de 22 anos, em 2017. Ela morava em São João do Meriti, usava o ramal Belford Roxo, o mais sucateado da Supervia, e pegava o trem na estação Coelho da Rocha para ir de casa à Uezo, onde cursava faculdade de biologia. Ao embarcar, ela caiu no vão entre a composição e a plataforma e, com a partida do trem, foi vítima de um atropelamento. Seu corpo ficou 8h na linha e os parentes só souberam do acidente por meio das redes sociais. A Supervia não só foi omissa como disse à família que a jovem havia se suicidado. Foi preciso toda uma mobilização dos familiares para desmentir esta versão e denunciar os riscos que levaram à morte da Joana. Não há, por exemplo, um sistema de espelhos que permita aos maquinistas ver os passageiros ou pranchões que aproximem trem e plataforma. Temos uma infraestrutura urbana que oferece riscos para a população e os territórios mais expostos são os mais pobres, que concentram o maior número de negros. Quando não se investe em transporte público de qualidade nas periferias, a população mais afetada é a negra.
Que desdobramentos a morte da Joana teve?
A Rafaela, que é prima da Joana, procurou a Casa para saber se o caso dela era isolado e, a partir disso, demos início a um levantamento sobre óbitos. Até a vereadora Mariele Franco nos ajudou à época. Foi um caso muito icônico. Contabilizamos 368 mortes por atropelamento em ferrovias no Rio entre 2008 e 2018. Deste total, 68% das vítimas eram negros. Este é um exemplo que torna evidente que o descuidado com transporte público não afeta de maneira igual a todos. O racismo estrutural que gera o investimento de 10 bilhões em Ipanema é o mesmo que decide não investir em Belford Roxo e mascara as mortes por acidentes como suicídios. Isso não deveria ser assim. Após a morte da Joana, passamos a dedicar um olhar mais atento às mortes em transportes. No último Mapa da Desigualdade, incluímos a informação de que a população negra é a que mais morre em acidentes em transportes na região metropolitana do Rio. Em Duque de Caxias, 74% dos mortos nesta situação eram negros. Na capital, 65%. Em São João, 94%. É a face mais brutal do racismo.
Você enxerga consequências desta visão em modais como o BRT?
Vejo o BRT no Rio como uma iniciativa que teve pontos positivos e negativos, como todas. A Transcarioca e a Transoeste são modais de média capacidade que atendem a parcelas importantes da população e ampliaram o número de pessoas atendidas por serviços deste tipo, como mostram dados levantados pelo ITDP. Agora, há vários problemas em relação à manutenção da frota, da pista e das estações. A degradação da qualidade vem desses problemas e de outros, como a superlotação. Tivemos uma intervenção no BRT para tentar equacionar estas questões, mas que não resultou em mudanças profundas.
Que impactos a pandemia de coronavírus teve no sistema de transportes carioca?
A pandemia complicou o que já estava complicado no setor de transportes. As ofertas de financiamento para as empresas escassearam, o número de passageiros caiu, derrubou a receita e o sistema se tornou menos sustentável como um todo. No Rio, algumas empresas já vinham fechando. Com a queda no número de usuários, há linhas de ônibus que estão desaparecendo. Para mim, a solução para este quadro passa por 2 pontos. Precisamos de um sistema de transporte público com fontes de financiamento para além da tarifa e mais transparência e controle por parte do poder público, na forma de fiscalização e outros instrumentos. O Estado é responsável por manter a qualidade do serviço e o cumprimento dos compromissos estabelecidos. Prometida para 2016, a climatização dos ônibus cariocas até hoje não aconteceu, por exemplo.
E como você enxerga a relação entre mobilidade e violência na cidade?
A violência é uma variável determinante para vida da cidade hoje. Se eu pego um trem na Central às 18h e um tiroteio em Manguinhos interrompe a circulação no ramal Saracuruna e me impede de chegar em casa, estamos diante de um problema de segurança ou de mobilidade? Essas coisas se relacionam. A violência pode fazer com que eu priorize o uso do carro por considerar mais seguro e escolha determinados trajetos em detrimento de outros – entre outras dinâmicas. A ideia da violência no Rio também está muito ligada ao racismo. A linha 474 é alvo de constante de duras e está sempre ameaçada de ser descontinuada. Ela conecta o Jacaré, um dos bairros com maior concentração de negros da cidade, com Copacabana e o pessoal da praia não quer os moradores da Zona Norte por lá. Esta polêmica é apenas uma questão de mobilidade ou tem relação com a interdição de espaços a que pessoas negras estão submetidas em nossa sociedade? Além do espaço, uma educação de qualidade que permita ao negro um bom desenvolvimento e a chance de disputar melhores salários é também algo restrito. Nossa cidade ainda é muito segregada.
Os dados produzidos sobre mobilidade no Rio contemplam a questão racial?
Com relação a este aspecto, considero importante reforçar a importância do Censo, que tem sua realização ameaçada de suspensão hoje pelo Governo Federal. Ele é a principal ferramenta para captação de dados que orientam pesquisas e investimentos. Tem que ter censo em 2021. Não pode ser adiado. Num cenário em que sua realização esteja garantida, temos que exigir que componentes de raça sejam investigados. A nível local, as prefeituras têm uma dificuldade muito grande de organizar dados de oferta de serviço público, disponibilizá-los e fazer recortes raciais. Às vezes, é difícil de conseguir até por meio de Lei de Acesso à Informação. Essa cultura de sigilo precisa acabar para entendermos melhor a realidade dos municípios.
Por último, que soluções podem ajudar a mudar o cenário atual?
Vejo o mototáxi como um bom exemplo de uma solução desenvolvida para um problema específico nas comunidades do Rio. Muitas vezes, estes locais só contam com transporte público até a entrada, o que forçaria idosos a andar à pé distâncias de 1 quilômetro ou mais se não houvesse o serviço prestado pelas motos. Seria legal também ver ativistas criarem mais faixas para ciclistas, estacionamentos para bicicletas e outras soluções de urbanismo tático. Essas ações têm o poder de criar espaços seguros para o transporte ativo e provocar o Estado a desenvolver políticas cabíveis. Direito à cidade não é só acessar serviços, mas reinventar o urbano. Por fim, creio que precisamos questionar o modelo de financiamento do transporte público que temos em nossas cidades. Hoje, ele é baseado na tarifa, o que estimula que os preços sejam altos e gera crises quando o número de usuários cai. Não é vantajoso nem para os empresários nem para os passageiros. É necessário irmos por outro caminho, com mais controle e transparência. Isso é fundamental para transformações mais estruturais no tipo de mobilidade que temos e cidades mais justas do ponto de vista social e racial.